sexta-feira, 10 de setembro de 2021

O GOLPE JÁ FORA DADO




Marcelo Gomes 

Doutor em sociologia




    Nunca será demais lembrar as sábias considerações de Umberto Eco sobre a contemporaneidade e sobre a nossa condição de vivermos sob o legado da Idiocracia. Esse termo, além de ser o título de um filme de humor, se popularizou muito por descrever uma tendência à precarização inerente a uma democracia das massas entregues à sua indigência cultural. Esta, produto de uma péssima educação combinada com uma cultura de massa esvaziada e uma degradação das condições profissionais nos mais diversos setores. O humano por detrás da produção não condiz com o patamar tecnológico ou civilizatório. Chame-se esta crítica de elitismo, mas o fato é que minha geração forjada pelos abjetos e inúteis programas de auditório televisivos fora sucedida por outra geração forjada nas bolhas sombrias e conspirativas da internet. É claro que o fosso seria menor caso houvesse um devido preparo educativo, político e científico do cidadão. Mas não há. 

    E é por isso que a voz de Umberto eco — com perdão do trocadilho — ecoa soberana. Dizia ele: “a TV já havia colocado o idiota da aldeia em um patamar no qual ele se sentia superior. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. E complementa dizendo que a internet deu voz a uma legião de imbecis. A imbecilidade sempre existiu. Não é monopólio de nossos tempos. Longe disso. Mas ela antes não se arvorava a “senhora da verdade” como o é hoje. Claro que há problemas por detrás do mito da autoridade do especialista, nem sempre certo e, por condição humana, falível. Outro problema era o monopólio da mídia e do jornalismo tradicionais, que se constituíram como o quarto poder justamente por serem capazes de condicionar toda uma nação. Mas se por um lado éramos manipulados por grupos da elite econômica e das comunicações, poderíamos ao menos permanecer nos marcos de certa qualificação técnica. Hoje estamos entregues ao mesmo jogo manipulador, mas agora movidos por gabinetes controlados por milícias digitais e influenciadores tão vazios quanto suas estantes de livros. Ou pior, pelos tios e tias do whatsapp e pelos grupos teóricos da conspiração. O populismo é sedutor. Dizia outrora Castro Alves que a praça é do povo como o céu é do condor. A nova Ágora está tomada pelo povo, mas o povo sem o preparo é presa fácil dos punguistas, aliciadores, charlatães, fundadores de seitas e vendedores de fármacos duvidosos. Vendem-se elixires para os males do corpo e os males da alma, mas todos eles falsificados. A retórica populista encanta os desavisados como outrora os discursos de Hitler nos botequins — antes do idiota da aldeia ser promovido a chanceler — encantava o alemão mal formado e constrangido pela crise da década de 30. Vender respostas simples para problemas complexos é especialidade do populista e origem de grandes tragédias, já que invariavelmente são falsas, como prediz o sábio aforismo de Henry Louis Mencken. 

    Neste 7 de setembro, no dia de celebração de uma independência feita pelo alto, pudemos contemplar todo o horror da idiocracia. Certamente a grande maioria dos cidadãos brasileiros jamais participaria daquela grotesca pantomima criada artificialmente por um governo que claudica e vislumbra a cadeia, mas ainda assim alguns milhares de brasileiros se deram ao trabalho de saírem de suas casas para sustentar o indiscutível pior presidente que já governou o Brasil. E olha que já tivemos muitos candidatos a “péssimo presidente”. Mas este que aí está ultrapassou e muito até a Hermes da Fonseca, Figueiredo ou Collor. Este certamente é um presidente à altura do filme acima descrito, no qual o planeta, devastado por uma crise ambiental e societária criada pela idiotização generalizada, era dirigido por um presidente performático típico destes grupos ou programas de auditório. Como a Itália é o berço da ciência política e de Maquiavel, era de se esperar que ela antecipasse esse movimento em décadas, como foi com a eleição de Berlusconi. Mas convenhamos que nosso “Berlusconi” é muito pior. E é o ícone pop que na idiocracia tem as credenciais para ser um governante, bem diferente do sonho de Platão e de seu rei filósofo. Na política idiocrática vigora o lema paradoxal menos é mais. Levam isso ao pé da letra. 

    Neste 7 de setembro a turba enraivecida saiu aos brados vociferando contra o STF e pedindo ou autorizando um golpe de Estado a ser dado pelo próprio chefe da nação. Parece incrível e surreal, mas esse é o Brasil que temos pra hoje. Uma população que exige uma ditadura, a censura e o fechamento da casa de seus representantes. Também pede destituição dos ministros da suprema corte por estarem fazendo seu papel, que é guardar a constituição e encarcerarem criminosos. Ou seja, é a população que todo Talibã pede a Alá. Essa parte culturalmente miserável da população brasileira clama por um golpe, mas o golpe já foi dado em 2016. Por pior que o leitor queira avaliar o governo de Dilma, ela era honesta, foi democraticamente eleita e sem nenhum truque ou impulsionamento artificial das milícias digitais. Os grupos políticos e midiáticos adversários viram uma oportunidade e agarraram, mas o método usado corrói qualquer democracia. Tribunais de exceção, juízes parciais, vazamentos telegráficos e novelização da temática da corrupção deseducam o cidadão, fazendo-o crer que a política é somente um pardieiro sujo composto por pilantras. Isso destrói qualquer institucionalidade e ninguém se beneficia disso. Os golpistas foram surpreendidos pelo idiota da aldeia que estava no lugar certo na hora certa. Foi alçado a chefe de uma das maiores economias do mundo. Agora temos a economia destruída, um caos sanitário, mais de meio milhão (afora a subnotificação) de mortos pela covid e escândalos de uma família íntima a toda sorte de crime típico das máfias. O Brasil e o povo brasileiro já foram golpeados e agora essa parte miserável da população brasileira precisa ver e ouvir a outra parte que prefere não se expor ao ridículo daquele espetáculo bolsonarista. O governo Bolsonaro afundou antes mesmo do impeachment e é preciso que as pessoas tomem ciência disso.

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