quinta-feira, 22 de abril de 2021

Hamlet e o Bufão que sentou no trono

 


Prof. Dr. Marcelo Gomes

Doutor em Sociologia



Gritos engasgados de mais de 300 mil famílias que perderam alguém nesta pandemia ecoam no silêncio de nossas ruas. Por maiores que sejam os burburinhos das redes sociais — estas Ágoras virtuais contemporâneas — das passarelas da democracia, nossas ruas, o seu bloco principal está ausente, o povo. A manifestação popular se reduz ao balanço dentro do transporte coletivo na ânsia desesperada de manter seu ganha-pão e, sem apelo ou ajuda, ir para o trabalho tal como o gado vai espremido nas carrocerias em direção ao abate. E o faz desse modo indigno, uma vez que sequer uma mísera instrução segura e uma máscara descente nosso povo recebeu de seu mais tresloucado governante. Ao invés de segurança, o trabalhador adoentado recebeu escárnio, desinformação, remédios ineficazes, mentiras e desdém. Foi chamado de fraco, covarde e maricas. Vemos, horrorizados, nosso governante simbolicamente cuspir em nossos mortos.

O bobo da corte com suas piadas, risos paranoicos, suas peças desprezíveis e falas chocantes ganhou notoriedade no feudo. Cansou das sombras palacianas e decidiu aspirar à condição de rei. Mas não tinha nenhuma majestade, apenas ódio por todos, pois em seu íntimo reconhece o rasgo de caráter que traz consigo por detrás do olhar daqueles que contemplam essa criatura vil e teratológica cuja serventia se restringe a uma distração vulgar nas noites moribundas. O traço patológico de um homem transbordou-se para um governo patológico. A pandemia do Sars-cov2 atinge o mundo inteiro, mas no Brasil alia-se a uma necropolítica. E é nas noites de quinta que a besta se encontra com seus comensais para devorar os nossos corpos vulneráveis junto à abjeção do inominável. A marca mais conspícua do fascismo é o fascínio. Neste caso, o fascínio pela morte e pela destruição. O fascismo festeja a tanatolatria e, de joelhos, acende incensos no altar de Anúbis. Freud descrevera a pulsão de vida e a pulsão de morte e no Brasil de hoje ficou evidente para todos aonde se chega quando movidos pelo segundo destes desejos.

Tudo começa com uma arminha gestual, passa para uma fala como “vamos metralhar a petralhada” ou “fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”, depois edita o decreto das armas e rejeita compra de vacinas. Pois bem, chegamos à marca de dez vezes mais que o prometido e estamos indo para os 400 mil mortos. E não, não é um exagero dizer que o bufão que se sentou no trono é responsável por isso. Até as pedras deste reino já sabem que o grande responsável pelo agravamento de nossa situação é o presidente. Seja porque receita criminosamente o uso de medicamentos sabidamente ineficazes, seja porque demitiu ministros da saúde que não prevaricavam, estimulou aglomeração, desdenhou de máscaras e colocou todos os óbices possíveis para a aquisição das vacinas. Consta que seu filho recomendou que enfiássemos as máscaras no reto. Recentemente uma pesquisa do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da USP identificou por detrás de centenas de normas do governo federal uma clara tentativa de sabotar o combate à pandemia, incluindo o estímulo deliberado ao contágio. Foi ainda denunciado no Tribunal Penal de Haia. Se este homem não é criminoso então o conceito de criminalidade deve desaparecer dos dicionários. E aqui nem se menciona o incriminador fato de que o suposto assassino de Marielle Franco esteve no condomínio deste bufão procurando por ele no mesmo dia do assassinato desta vereadora, uma rival de seu filho. E ali esteve, segundo reportagens, umas doze vezes.

É uma vergonha e uma tragédia para nossa geração que este homem ainda esteja na presidência e alguém lhe dê ouvidos. Nunca foi mais do que aquilo que é: um bobo da corte doentio e repugnante que merece nosso desprezo e, no caso de um dia ser julgado e condenado, estar detrás das grades. Todavia, para que isso ocorra é preciso que seja apeado do trono. Enquanto lá estiver, os bajuladores e aduladores do poder continuarão a reverenciá-lo, fazendo vista grossa a todos os seus atos hediondos, como o fazem hoje muitos dos militares que lá estão. E o fazem não porque nele creem, mas porque é o preço a pagar por suas prebendas e cargos. O leite continua escorrendo e por isso estes sequazes continuam sorvendo aquilo que é obtido do suor e do sangue de nosso povo tão ultrajado.

Essa malta de bajuladores irresponsáveis precisa ser acordada pelas manifestações democráticas e populares de um povo que abdicou da política em nome da autopreservação durante a pandemia. Pois nós morreremos mais ficando em silêncio do que se nos expusermos vigorosamente contra este mar de calamidades. E o que faz nosso povo mais estéril e passivo? Seria o medo da morte por Covid19 que nos mantém com medo das ruas e do exercício saudável da cidadania? Ou seriam os séculos de uma pedagogia negativa na qual ao povo jamais fora permitido participar efetivamente da democracia por mais de alguns anos? O fato é que, não satisfeito em ultrapassar todos os limites, nosso bufão resolveu uma última cartada e cometeu o mais hediondo dos crimes que foi tentar um autogolpe e atentar contra a frágil democracia de nosso país. Não podemos assistir um presidente condenando pessoas à morte, tanto quanto nossa democracia, sem exigir seu impedimento no parlamento. É nosso dever enquanto cidadãos cônscios do desastre deste governo. 

Outrora, na famosa obra trágica shakespeariana, numa Dinamarca marcada pela infâmia e degradação similar ao Brasil de hoje, o príncipe Hamlet faz um lamento ante o horror. Diz ele no trecho imortal do qual muitos só conhecem o início: 

Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas de um ultrajante fardo, ou tomar armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo?[...] Sim, eis aí a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa! Porque, senão, quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno, quando ele próprio pudesse encontrar quietude com um simples estilete? Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, ao invés de nos atirarmos a outros que desconhecemos? E é assim que a consciência nos transforma em covardes e é assim que o primitivo verdor de nossas resoluções se estiola na pálida sombra do pensamento e é assim que as empresas de maior alento e importância, com tais reflexões, desviam seu curso e deixam de ter o nome de ação.

Essa passagem pode ser considerada como uma ode à ação, seja o suicídio ou a luta fratricida. Mas não precisamos de nenhuma delas. Atingimos um estágio civilizatório superior e hoje temos o arbítrio de um Estado de Direito que nos garante instrumentos para impedir patifes e candidatos a tiranos; impedir criminosos e todo aquele governante que atente contra nossas vidas e contra a democracia de nosso país. Portanto, cobremos dos poderes instituídos a defesa de todos nós contra esse mar de calamidades provocado por estarmos à mercê de um evidente despreparado e irresponsável no governo. Isso é um direito defendido até mesmo pelo liberal John Locke. Sair às ruas para protestar com responsabilidade e cuidado talvez seja mais prudente do que aguardar a morte chegar por uma pandemia descontrolada por estarmos nas mãos de negacionistas. O impeachment hoje é tão necessário quanto a vacina e o lockdown. E quem diz isso são as ciências, tanto a epidemiologia quanto a ciência política. Lembremos a este ser ignominioso que 2021 não é mais 1964.



quinta-feira, 15 de abril de 2021

UM BOM EXAME DE CONSCIÊNCIA

 

   

 Carlos Alberto Gomes

Professor é autor dos romances Ainda Resta uma Luz e Tramas do Destino publicados pela Editora Scortecci.  Tem diversos contos, crônicas e poesias publicados em edições variadas.



        Trabalhar é preciso. Porém, quando atingimos determinado e satisfatório grau de maturidade, adotamos a fase dos questionamentos.  Passamos então a indagar sobre nossas atitudes, não só do presente como voltamos nossos pensamentos às atitudes tomadas em nosso passado mais remoto.  Percebemos então que muita coisa que negligenciamos no passado ou que relegamos a um segundo plano, fossem talvez mais importantes do que nos parecia naquele momento.  Na verdade, nossa tabela de valores era diferente da que provavelmente adotamos com o passar do tempo.

         Naquela oportunidade, nossa atenção era voltada ao sustento da família e à responsabilidade de ampará-la e trazer-lhe tranquilidade em razão da necessidade de manter um status social do mais alto grau que poderíamos conseguir.  Mas será que se houvéssemos em vez disto nos dedicado um “tiquinho” mais à nossa família, notadamente aos nossos filhos, teríamos um resultado aquém daquilo que conseguimos e estaríamos a um patamar superior que atingimos até hoje?

         Provavelmente, sim.  Hoje, aos oitenta anos de idade, vemos tudo com maiores detalhes e se levarmos em conta a totalidade dos fatores que contribuem para o êxito de nossas empreitadas e considerando ainda o fator afetivo, cuja influência é por nós reconhecida, podemos até compará-la com a máxima de John Nash que nos diz que “é somente nas misteriosas equações do amor que qualquer lógica ou razão poderão ser encontradas”.  Isto me levou a concordar que através do casuísmo muitas vezes satisfazemos nosso ego, realizando muitas de nossas pretensões.  Surpreendentemente, concluímos que na verdade provavelmente teria sido muito superior ao que logramos alcançar com o descaso ao convívio com nossos entes mais queridos.  Ah! Hoje você poderá conseguir estes resultados através de seus netos.  Sim, poderia.  Só que poderíamos atentar para outro ditado ou máxima, que nos diz: “Águas passadas não movem moinhos e jamais retornam pelo mesmo caminho”.

         Hoje nossos filhos, já adultos, são os pais de agora o que nos leva a certeza de que conseguimos mantê-los unidos a nós.  Mostram-nos diariamente que nos amam e que se tornaram até melhores do que poderíamos esperar e sem ufanismo ou comiseração achar que não merecemos.  Percebo neles que se dedicam mais aos filhos do que o fiz em minha vida.  Discordo deles quando afirmam que suas atitudes são nada mais, nada menos, do que aprenderam com nosso exemplo.  São eles na verdade, o exemplo que hoje nos dão, com sua total dedicação aos meus netos, seus filhos.

         Este relato é fruto de um diálogo entre eu e minha esposa no qual eu falava sobre uma pescaria que, juntamente com um primo e dois sobrinhos, fizemos às margens de um rio, isto na década de cinquenta.  A ideia de fazermos esse piquenique surgiu de forma totalmente espontânea e informal.

         Justamente foi aí que a consciência que nos fustiga e é causa de nossos conflitos, entrou em ação, pois jamais o fiz e se o fiz foi tão esporádico que sequer me ocorre à memória, ter um dia, espontaneamente e sem planejamento, levado meus dois filhos para um piquenique semelhante à beira de um rio, onde o pensamento se liberta e vaga solto por sobre a amplidão erma e isolada do convívio com os demais seres com os quais convivemos.

         Só poderíamos imaginar o que aconteceria nesses momentos se houvéssemos vivido tais momentos.  Mas infelizmente não os houve na ocasião e não tomamos consciência deles o que talvez, nos privou de momentos de muito êxtase.  Disto temos absoluta certeza, pois ficou em nós aquele gostinho que apenas existiu em pequenas doses de saudade do que sequer existiu na realidade. Parece difícil de entendermos, mas talvez o encontrássemos neste pequeno verso que compus, talvez na vã tentativa de explicar o inexeplicável.

Saudade se não existisses

O que seria da gente?

Pois, faze-nos sentir o passado,

Como se ainda fosse presente!

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Sermão do abismo

Tenho receio de minhas opiniões. 

Sim, são minhas.  Sou eu quem devo responder por elas.  Por cada uma delas. Mas às vezes elas ganham vida própria. Se lançam e flutuam juntando-se a outras tantas, de tantos outros, que esvoaçam por toda parte denunciando e alertando sabe-se lá quem. Possuem uma missão real, qual seja a de explicitar a indignação coletiva dos que amam o país, sua gente e a democracia. 

Enfim são óbvias.  Tão claras e tão precisas, que promovem a mesma dilaceração que a verdade causa quando aplicada sem piedade. Como guardá-las ou detê-las?  

Os fatos estão aí expostos. Irrefutáveis.  

Então por que o medo? 

É que ao mesmo tempo há pessoas que não veem sob a mesma ótica, as coisas como a gente vê.  Quem sabe como, já que teoricamente são fatos.  E daí que, dependendo do tema, do local, ou da ocasião, acaba que corremos o risco de ficar sós, segurando a faixa ou o cartaz.

Não teria importância, não fosse pelas reações inacreditáveis que temos visto.

Por incrível que pareça, depois de um curto espaço de tempo vivendo sob a égide da liberdade, da livre opinião, agora se é perseguido por exercitar o democrático direito de falar, clamar, escrever, manifestar-se.

Um dia foi por causa do "genocida".  Outro dia, por causa do "pequi roído". Nada que transgrida ou agrida a Constituição Federal. Apenas opiniões, ou avaliação de bom ou mau gosto, lançadas sobre quem se colocou na posição de "vidraça".  Pessoa pública exposta e à mercê dos julgamentos, por enquanto popular, mais tarde o da história.

Ao mesmo tempo, livre e ardorosamente, cartazes, faixas e brados, passeatas e manifestações que contrariam decretos estaduais e municipais, pedem o ilegal fechamento do Congresso, o desafiador fechamento do Supremo e a absurda intervenção militar sem qualquer problemas.  

No mínimo estranho, contraditório e sobretudo parcial.  E pelo que vemos, há um esforço mesmo para que se guarde para si, aquilo que não convém ao espectro que paira sob as sombras de um tempo assustador.

Em paralelo,  religiosos das mais diversas tendências de fé, com sua certa influência, se utilizam dos microfones e dos púlpitos desafiando os próprios líderes de suas congregações, que não os autorizam a tal, para destilar sua ignomínia contra pessoas, tendências ideológicas ou simplesmente cidadãos despretensiosos que apenas pensam diferente.

Ganham seu minuto de fama, ainda que péssima, enquanto acabam por arrebanhar uma ínfima parte de seu rebanho, seja desnorteando-a, seja apenas exercendo sua vaidade pessoal.

Foi aliás o caso de um padre de Rio Preto na última semana.

Que pena.  Que triste.  Sobretudo quando cristão, demonstrando seu total desconhecimento da Palavra Libertadora e Redentora do Cristo.  Ainda que alguns possam ter se regozijado ao ouvir, com agrado, uma opinião similar a quem possuem, boa parte por sua vez, passa a questionar o pregador que terá que se explicar perante o próprio comando a que deve obediência, posto que tem no seu máximo pontífice, o mais contrário exemplo do que disse. 

Imagino o valente e avançado Francisco ouvindo um dos seu proferindo, não o Sermão da Montanha, mas o sermão do abismo, da cova.

Esse seu catecismo particular, seu padre, não agrega, não fortalece e não educa.  Pelo contrário, faz coro a todo um trabalho de desinformação que bota a prova o que se ensinam nos seminários. 

O senhor também devia ter medo de sua opinião.  Por que só eu então tenho que temer a minha? 

Ah, lembrei.  Porque ela não segue o fluxo, a corrente, a moda.  Ela não surgiu assim, do nada, levando de arrasto o bom, o justo e o melhor do mundo. 


O déspota embotado



Prof. Dr. Marcelo Gomes

Graduado em Ciências Sociais e Mestrado em Sociologia 
pela FCL-UNESP é Doutor em Sociologia pelo 
    Instituto de Filosofia e 
Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP 


O impacto da condenação e morte de Sócrates em Platão foi profundo e hoje sabemos o quão odiosa se tornou a democracia para este pensador grego. Afinal, que virtuosa Pólis era aquela que matou o mais sábio dos homens?

Para este filósofo, a democracia tende a se corromper em demagogia porque está à mercê da manipulação retórica conduzida pelos governantes. E esta tarefa ainda é auxiliada por sofistas que liquidam a consistência objetiva da verdade e corroem a realidade a partir de seus simulacros discursivos. Esta manipulação destrói a base objetiva da vida social e da confiança. A vida se torna dependente da opinião pública ou da maioria irresponsável e volúvel. A democracia se corromperia pela sua dependência precípua de sustentação na veleidade de uma massa cada vez mais licenciosa, ignorante e movida pelas paixões.

Por isso mesmo é que o legado democrático é sempre a crise política esperando o desfecho e a resolução vinda pelos braços de um tirano ou salvador. É por estes motivos que a visão política de Platão se tornou execrável nos meios liberais e também nas esquerdas.

Todavia, Platão é um autor complexo tanto quanto sua crítica a esta forma de governo. E sugerem alguns: não seria uma ironia? E antes que o acusem de ser um daqueles tipos conservadores e bolsonaristas, lembremos também que do mesmo livro que transbordam estas palavras, saem outras exortações. A principal delas é que o remédio para estes males estaria numa sociedade hierarquizada e disciplinada. E se isso só piora a caracterização política de Platão, seu desfecho é interessante, pois advoga que esta sociedade deva ser comandada por um rei que seja ao mesmo tempo dirigente e amante da sabedoria. Era o rei filósofo, que só ganharia tal estatuto após uma vida inteira de estudos. Com isso em mente, podemos passar para nossas considerações.

Não podemos negar que a democracia, sobretudo essa que temos e que não passa de um arremedo frágil, de fato não é mãe de todas as virtudes. As massas ignorantes elegem seus representantes e só. E o fazem no calor das circunstâncias e sob as mais variadas formas de manipulação. As duas principais são: o poder que o dinheiro confere aos candidatos pesadamente financiados e a construção e administração das ideias que habitam a mente dos indivíduos. Quem controla o dinheiro e as ideias nas democracias capitalistas controla o resultado do pleito.

A manipulação das ideias criou o antipetismo e este elegeu Bolsonaro, o mesmo que odeia e ataca diuturnamente a democracia. Esta mesma democracia que permitiu que ele chegasse ao poder. E eleito foi e ainda o seria porque possui uma boa máquina de propaganda que opera a manipulação da verdade cuja eficácia está assentada na boa fé e na ignorância das massas. Ignorância, essa, criada e perpetuada justamente pelo mau funcionamento democrático da nossa república.

Tendo isso em mente, proponho um desafio: usar Platão para interpretar o Brasil atual. Em quê Platão estaria correto?

Quando vemos que fakenews ou — chamemos pelo nome as coisas — as mentiras mais deslavadas orientam políticas de Estado, como prescrição de tratamento contra Covid-19; não uso de máscaras ou isolamento; hostilidade contra a política de vacinação; ataque ao currículo e conteúdos escolares; políticas pedagógicas, etc. Enfim, quando a manipulação da verdade passa a ser a técnica demagógica do governante, Platão parece estar certo.

 Quando vemos que de um lado do povo vozes gritam pelo pai infalível Lula e de outro pelo pai mitológico Bolsonaro, parece que a debilidade das crises da democracia e apelo aos líderes demagogos descritos por Platão estavam corretos. Mas não nos enganemos, há demagogos de centro também. E pior que estes só os frios, insípidos e calculistas tecnocratas dos mercados ou da administração pública. E por isso, uma pitada de político por vocação não faz mal a uma democracia sólida, como bem sabia Max Weber.

Não há ilusões! Uma democracia — sobretudo estas de fachada ou movidas por uma oligarquia de bastidores — fundada em massas ignaras pode produzir tantas tragédias como a pior das autocracias. Pois em nenhuma delas o poder será limitado pelo uso da razão e princípio universal e igualitarista do humanismo. Mas nenhum destes casos é o caso brasileiro. Vivenciamos hoje o pior dos cenários jamais imaginados por Platão. O pior do autoritarismo com o pior da vulgaridade demagógica.  

O que é mais pernicioso para a vida na pólis? Um governo autocrático de um déspota esclarecido ou o governo “democrático” de um déspota embotado? Falso dilema e quase um sofisma. O que precisamos mesmo é de uma democracia popular exercida por um povo cultivado e educado. O único problema é que o pressuposto para que isso ocorra é que antes já tenha ocorrido. Só assim as massas serão cônscias e cultivadas e saberão o que fazer com o poder a elas outorgado ainda que abstratamente.

Do contrário, continuarão inertes e manipuladas ao sabor dos ventos. E que no limite celebrarão de forma imunda e ridícula o único exercício de poder que possuem a cada dois anos: o poder de alienarem-se do poder, seja para uma súcia de oligarcas da política partidária, para plutocratas do mercado ou, pior, para um ignorante qualquer cuja campanha fora impulsionada por mentiras e pelo ódio ardilosamente plantado contra governos de esquerda. Afinal, sempre souberam que o julgamento do povo é mais rápido do que o julgamento dos tribunais... Numa democracia quem controla o povo, controla o poder. E o povo é controlado, graças à carência material e intelectual, por aquilo que Shakespeare descrevia como “o vil metal”.

Brasil da Esperança, Rio Preto da Esperança.

É na eleição municipal que a democracia fica mais evidente, pois é nas cidades que os cidadãos de um país podem se manifestar de maneira mai...