sábado, 23 de setembro de 2023

Meu querido, meu velho... meu amigo.


Quando eu era criança, sofria muito para dormir. Gritava de medo.  Tinha sonhos, visões. Sensações horríveis. Fazia das noites de meus pais, um inferno. Até meu irmão mais novo, entrava na dança.

Meu pai, então professor primário, lidava bem com crianças.  Sempre paciente, se deitava comigo a contar histórias afim de me acalmar.  E assim eu podia dormir em paz, embalado por sua voz e por seu talento, nas diversas fantasias que narrava.

A cada dia era um conto novo, ou um repetido com outros finais e personagens diferentes. Criatividade nunca lhe faltou. Emprestava autores diversos como os Irmãos Grimm, Andersen e até Monteiro Lobato, mas também criava seus próprios.

Talvez por isso eu não me curava desse terror noturno que nutri até a adolescência. Afinal, pra mim era seguro e educativo dormir embalado por meu pai.

Uma vez, após algumas coisas estranhas acontecerem em casa, meus pais chamaram um padre para um tipo de “limpeza” do ambiente. Eu já era adulto, meu irmão também, mas na ocasião contaram um pouco do meu caso de infância a ele.  O padre levou o fato para o campo psicológico, alegando um possível receio de perde-los, mal resolvido em mim.  Inconscientemente, eu temia eles irem embora ou morrerem, ao que eu reagia dessa forma, segundo sua teoria, para chamar-lhes a atenção e tê-los por perto ao dormir.

Sabe, pode ser mesmo.  Eu tinha um medo danado de ter que sepultar meus pais.  A maior parte de minhas orações, era devotada a essa finalidade, digo, para distanciar ao máximo esse momento.

Quando eu ainda era um bebê, meus pais perderam uma filha.  Minha irmãzinha que foi muito esperada por eles.  Morreu logo após nascer.  Consta que uma dor forte e muito sofrimento se abateram sobre minha família. Eu então, embora sem entender nada, fui apresentado à morte, a perda, de maneira brutal.  Vi e registrei em meu subconsciente, o que isso causou a eles. Tal coisa me foi revelada mais tarde quando fiz regressão de idade com um terapeuta e depois, novamente, numa sessão de constelação familiar com outro profissional.  Ou seja, cresci com esse receio profundo, do dia em que seria apartado de meus amados genitores.

Hoje em dia, fico pensando em que momento da vida a gente aprende, ou se prepara para suportar e enfrentar esse temido episódio de nossas existências, qual seja, o de enterrar quem amamos que é sempre muito doloroso.

Mas nem todo mundo reage igual.  Alguns e logo, se desapegam um pouco mais que outros.  Vão trabalhar ou morar longe, voluntariamente, aparecendo de quando em quando para rever os seus. Há também quem o faz por força da necessidade e se vê, de uma hora pra outra, do outro lado da Terra, sem poder visitar constantemente seus queridos. Que remédio?  Aceitar.

Em ambos os casos, os encontros passam a ser raros ou fortuitos. Mas não eu. Não consegui.  Morava na mesma cidade e até poucos meses, no mesmo bairro de meus pais.

Os encontros eram constantes e nos falávamos, pelo menos ao telefone diariamente, ainda que eu viajasse para longe.

Os domingos eram juntos e boa parte das tardes, mereciam ser encerradas com um café em sua casa. Éramos uma família unida.  Sem dúvidas.

Aprendi meu ofício com meu pai.  E sempre recebi dele apoio, afeto, carinho. Jamais uma crítica, ainda que eu merecesse várias vezes.

Tudo o que consegui, ou mesmo como me mantenho até hoje, devo a ele em primeiro lugar. 

Corretor de Seguros, me iniciou no ramo que mais adiante me fez fundar minha própria corretora e fazer dela uma grande rede de franquias.

Quando ele se aposentou, ainda motivado e ativo, eu podia tê-lo trazido pra junto de mim, pois sua experiência e “cartaz” perante os grandes do Mercado, ainda era alto.  Não sei porque não o fiz.

Sempre fomos parceiros.  Eu e meus pais sempre nos auto socorremos quando necessário.  Claro, mais eles o fizeram por mim que eu por eles.

No entanto, após contrair um câncer de pulmão, meu pai começou a ficar um pouco mais dependente de mim.

E foi uma honra poder acompanha-lo às consultas, às quimios, às internações, embora ele, sempre muito auto suficiente, o fez por conta própria enquanto pôde.

O que me marcou, foi acompanha-lo diariamente, em sua dor, mas sem compreender muito seus apelos.

Dentre gemidos e outras solicitações, meu pai clamava por algum tipo de ajuda, pois se afirmava com desespero. Como se negava a ir a um psiquiatra, eu então perdia um pouco da paciência e não compreendia os motivos do tal desespero. Ele tinha problemas para dormir e para se acalmar e eu, em momento algum, retribuí suas histórias, seus contos, sua paciência, seu amor profundo, que me dedicou na infância diante do “meu desespero”.

Pudesse então eu deitar-me ao seu lado, segurar sua mão e contar-lhe uma história. Não seria como as suas, sempre tão ricas. Mas eu poderia com isso vê-lo dormir aos poucos e descansar tranquilo.

Não... não o fiz.

Minha mãe, que agora mora comigo, ao arrumar as coisas de meu pai, entregou-me uma pasta que encontrou de seus guardados.  Nela, dezenas de contos, engraçados, inteligentes, sensíveis, inclusive sobre meus filhos. 

Olha isso.  Ainda longe, em outro plano, suas histórias podem embalar meu sono sempre ruim.  Espantar meus fantasmas.  Acalmar, ainda hoje, um pouco o meu coração.

Amor que transcende é assim mesmo.

No seu leito de morte, minutos antes de fechar os olhos derradeiramente, me contou uma última fantasia:

“Diga aos seus filhos que ficará tudo bem. Diga a sua mãe, que estou sorrindo.  Cuide dela por mim.  Diga ao seu irmão, que sou feliz.”

E dormiu, enfim.

2 comentários:

  1. Meu nobre amigo, que história de vida linda!! Nos traz a reflexão! Na correria da vida, quantos momentos importantíssimos perdemos. Ainda há tempo para valorizamos nossos pais, amigos que nos apoiam e sempre estão conosco e às vezes não percebemos. Obrigado por essa reflexão tão oportuna! Parabéns!! Abraço!!!

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