terça-feira, 14 de abril de 2009

Capitalismo e as Bruxas de Salem


Por
Marcelo Gomes



Não é incomum vermos em nossos noticiários o aparente crescimento de casos de abusos sexuais contra crianças. A chamada pedofilia parece ter virado moda. Ou, se não virou, ao menos agora parece que as vítimas possuem mais coragem para denunciar seus agressores. Quem sabe até as autoridades estão mais ágeis e competentes. De qualquer forma, manchetes ganham tom de histeria e a mídia joga todo o foco de sua “iluminação” nestes delitos, promovendo uma atmosfera moralizante que se assemelha a caça às bruxas. A mais recente ocorrendo em Catanduva, uma cidadezinha insular cercada de canaviais por todos os lados como tantas outras aqui de nossa região. Este artigo se propõe, no entanto, fazer uma análise um tanto indigesta sobre tais fatos.
Primeiramente, como não poderia deixar de ser, façamos uma breve constatação a respeito do primeiro objeto. No caso, a pedofilia. Somente depois discutiremos o capitalismo. Etimologicamente a palavra tem sua raiz grega e não inspira tanta gravidade (a não ser pela carga negativa que adquiriu recentemente). Na Grécia não era um escândalo tão grande assim adultos terem desejos por crianças e adolescentes, inclusive do mesmo sexo. Alguns banquetes na antiguidade clássica acabavam geralmente com sobremesas orgíacas e não era raro que se considerasse uma honra ser iniciado pelo seu mestre (até mesmo mestres filósofos) na arte da concupiscência. Mas o mundo, aparentemente, vai mudando e se transformando para melhor (é o que dizem os positivistas e otimistas ingênuos). O monopólio da fé, quando o Estado se confundia com a igreja (hoje se confunde com as igrejas) na Idade Média, deve ter garantido aos clérigos outros tantos banquetes assim com jovens e crianças. O aliciador deixou de ser o mestre do logos para se tornar o mestre evangelista. Essa prática, ao que tudo indica, continua de forma renitente a imperar em seminários e congêneres religiosos. Sabe-se que religiosos são, em sua maioria, invariavelmente reprimidos e por isso as galerias e alcovas representam um ótimo e sigiloso lugar para que seu Id possa se manifestar. Crêem os otimistas que essas práticas vêm declinando com o proporcional declínio das religiões institucionalizadas. De qualquer forma, não é raro que tais práticas outrora recobertas com o manto da sabedoria (no caso da pedagogia grega) ou com o manto sagrado da fides (no caso dos seminários – nome inclusive sugestivo!) cederam lugar ao vulgar e rasteiro trapo da celebração da ignorância hedonista burguesa. Até cantores pop-stars acabam, ainda que desbotados, entrando nesse festival (desta vez não mais nas alcovas monásticas, mas nas alcovas da never-land). No entanto, isso se tornou algo muito feio.
Mas se isso sempre ocorreu, devemos voltar a nos perguntar: por que somente agora teria se abatido sobre nossa sociedade um senso moral resoluto? Teria sido a internet que, com suas chances de anonimato, alimentaria esse senso de impunidade por parte dos aliciadores? Ou, ao contrário, tornaria mais fácil a identificação destas “aberrações da natureza”? Num mundo paradoxal, não me espantaria ser um misto das duas coisas. Mas ainda fica a indagação de todo o alarde feito pela mídia e também da comoção pública sobre isso.
A história pode nos brindar com alguns ensinamentos. No caso, uma boa recordação é quanto ao episódio das bruxas de Salem, uma cidade estadunidense que ficou famosa e imortalizada num belo filme com Wynona Raider e Daniel Day-Lewis. Nesta ocorrência, um grupo de jovens buscava se safar do castigo para seus atos imorais jogando a culpa em cidadãos inocentes da localidade. Um prato cheio para o Santo Ofício na sua forma puritana e para os jovens alimentados por uma histeria coletiva que via bruxas por trás de qualquer cidadão. Assim, esse episódio nos ensina que muitas vezes a melhor defesa é o ataque e que quando se quer esconder os próprios pecados, busca “cisco nos olhos alheios”.
Contudo, fomos longe demais nesta ilação. Os atos destes aliciadores de menores estão muito além de serem meros “ciscos” e de forma alguma são “inocentes” como os cidadãos de Salem. Bem que a psicologia evolutiva poderia até amenizar este delito e a filosofia poderia até fazer uma consideração ética sobre a responsabilidade ou não destes atos cruéis. Sabemos que algumas correntes deterministas dentro da filosofia — particularmente aquelas oriundas da doutrina do barão de Holbach — buscavam provar que todas as coisas são fruto de uma determinação causal e que esta causalidade priva completamente a possibilidade do livre-arbítrio. Ora, se não há livre-arbítrio, não há responsabilidade alguma. Afinal, neste caso, ninguém é intencionalmente culpado pelos seus atos. O problema da fundamentação moral está longe de ter se resolvido. Só teremos responsabilidade moral se nossas ações forem fruto de uma vontade livre, ou seja, se não formos determinados por causas inelutáveis exteriores ou mesmo interiores. E é muito difícil argumentar contra a existência destas determinações. Gostaríamos muito de ser livres, mas para isso teremos que provar que o homem nem é determinado pelo seu meio e nem pela sua natureza. Quanto a esta última, a natureza, se somos fruto dela e temos uma descendência direta da linhagem primata, não é de se estranhar que herdemos algumas características destes nossos primos. Neste campo ainda da psicologia evolutiva ter-se-ia que argumentar que o comportamento pedofílico propicia algum benefício seletivo, coisa muito difícil de ocorrer se o desejo por crianças e adolescentes se dirigir a indivíduos que não atingiram sua maturidade sexual. Explicando, que vantagem seletiva teria um indivíduo que se relaciona com outro incapaz de gerar descendentes? Se há um gene determinante para a pedofilia é bem difícil que ele tenha sobrevivido, uma vez que seu portador dirige sua atenção para indivíduos inférteis e, como tal, não lhe propiciam a reprodução de seu genótipo. Mas e quanto à homosexualidade? Não cairia na mesma “desgraça” evolucionária? Afinal, se há um gene para o homossexualismo, ele está fadado à impossibilidade de reprodução no tempo. Talvez então a causa destes comportamentos geneticamente suicidas esteja em outros fatores determinantes que nos escapam, mas que sejam igualmente limitadores da responsabilidade dos contraventores, como causas psicológicas oriundas da formação social e familiar.
Mas não levemos isso muito a sério. Do contrário, estaríamos derruindo todo um mundo de concepções jurídicas sobre a responsabilidade de cada ser humano dotado de faculdades racionais. O que importa, a fim de legitimidade, é continuar acreditando que o princípio racional de cada homem lhe fornece autonomia e discernimento para com seus atos. Só assim alguém poderá ser culpado por eles. Assim, se concordamos então, a fim de uma boa convivência social de que tais atrocidades devem ser punidas exemplarmente, por que o mesmo não é estimulado quando um sistema econômico visivelmente produz ainda mais atrocidades? Não importa se há ou não uma volição racional para tais atos. A maioria das pessoas de nossa sociedade condena estes atos individuais. A indignação da maioria acaba prevalecendo neste caso (eis o princípio jurídico incontestável). Mas se um pedófilo abusa de uma criança inocente, as relações capitalistas fundadas na propriedade privada dos meios de produção jogam, do mesmo modo, um número ainda muito maior de crianças inocentes nos braços de aliciadores. A prostituição infantil nas ruas das grandes cidades e — principalmente — cidades do nordeste é muito maior do que estes casos veiculados pela grande mídia para chamar a atenção para um problema individual. E esse é o fundamento da nossa questão. A caça às bruxas acontece hoje em dia porque busca-se desesperadamente encontrar o mal — que se aplaca sobre nós — nos casos individuais. Não se trata de sermos lenientes com estes crimes individuais, mas existe um criminoso que gera muito mais vítimas que jamais é denunciado com o mesmo empenho. Nós já nos acostumamos: a morte de um filhinho de papai na zona sul do Rio gera muito mais comoção do que as milhares de mortes nos hospitais públicos e na vida indigente de uma população favelada. E isso acontece tanto porque quem morreu não era “qualquer um” como também pelo fato de que o criminoso não era o Estado nem um sistema econômico. Quem mata um estudante de classe média é sempre um indivíduo, mas quem mata milhares de jovens e crianças diariamente em nosso país é um sistema econômico e seu suporte administrativo chamado Estado burguês. Daí que a mídia se farta com denúncias aos criminosos individuais, mas se “esquece” propositalmente do grande vilão de nossa sociedade. A atrocidade capitalista não ficou no passado. No início da industrialização mulheres e crianças de até 5 anos eram arrastadas para as fábricas a fim de servirem ao capitalista têxtil como mão de obra barata, mas também serviam com seus corpos aos gerenciadores e braços-direitos do patrão. Quando eram mandadas embora, mulheres e crianças já tinham aprendido nessa pedagogia de fábrica como usar seus atributos biológicos para angariarem alguns trocados.
Hoje em dia pouca coisa mudou, a não ser o fato de que o estágio da prostituição fabril já não é essencialmente necessário para a prostituição das ruas numa sociedade cujas taxas de desemprego são altíssimas. Agora, crianças vão direto para a prática das ruas, sem passar pelos feitores da burguesia. Possivelmente, deixaram com isso de serem iniciadas por estes feitores de fábrica para serem iniciadas diretamente pelos patrões. Infelizmente, ontem como hoje, em questões morais, a burguesia não tem moral para falar nada. Tanto moralismo em nossos telejornais, portanto, não é o que chama atenção. O que nos chama atenção é o fato de que este moralismo é hipócrita. O que nos chama a atenção é que a pedofilia é o próprio status quo capitalista. Assim, se é legítimo condenar no varejo tais atrocidades e criminosos, deve ser legítimo condenar também no atacado. Se a coletividade, em que pese as explicações para atos tão monstruosos, tem a legitimidade de encarcerar um aliciador de menores, esta mesma coletividade tem obrigação de encarcerar todos os outros e o sistema que abusa da massa da população. Se é legítima esta caça às bruxas (e bruxos, principalmente) que seja também legítimo a instalação de um novo tribunal coletivo para caçar nosso delinqüente atacadista.
Assim, se as alcovas monásticas cederam lugar aos gabinetes parlamentares, então nada mais justo que o tribunal judiciário burguês ceda lugar à ditadura do proletariado, para que o julgamento coletivo desta aberração social chamada capitalismo tenha seu lócus adequado e sua sentença de morte proferida em alto e bom som!

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