quarta-feira, 14 de abril de 2021

O déspota embotado



Prof. Dr. Marcelo Gomes

Graduado em Ciências Sociais e Mestrado em Sociologia 
pela FCL-UNESP é Doutor em Sociologia pelo 
    Instituto de Filosofia e 
Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP 


O impacto da condenação e morte de Sócrates em Platão foi profundo e hoje sabemos o quão odiosa se tornou a democracia para este pensador grego. Afinal, que virtuosa Pólis era aquela que matou o mais sábio dos homens?

Para este filósofo, a democracia tende a se corromper em demagogia porque está à mercê da manipulação retórica conduzida pelos governantes. E esta tarefa ainda é auxiliada por sofistas que liquidam a consistência objetiva da verdade e corroem a realidade a partir de seus simulacros discursivos. Esta manipulação destrói a base objetiva da vida social e da confiança. A vida se torna dependente da opinião pública ou da maioria irresponsável e volúvel. A democracia se corromperia pela sua dependência precípua de sustentação na veleidade de uma massa cada vez mais licenciosa, ignorante e movida pelas paixões.

Por isso mesmo é que o legado democrático é sempre a crise política esperando o desfecho e a resolução vinda pelos braços de um tirano ou salvador. É por estes motivos que a visão política de Platão se tornou execrável nos meios liberais e também nas esquerdas.

Todavia, Platão é um autor complexo tanto quanto sua crítica a esta forma de governo. E sugerem alguns: não seria uma ironia? E antes que o acusem de ser um daqueles tipos conservadores e bolsonaristas, lembremos também que do mesmo livro que transbordam estas palavras, saem outras exortações. A principal delas é que o remédio para estes males estaria numa sociedade hierarquizada e disciplinada. E se isso só piora a caracterização política de Platão, seu desfecho é interessante, pois advoga que esta sociedade deva ser comandada por um rei que seja ao mesmo tempo dirigente e amante da sabedoria. Era o rei filósofo, que só ganharia tal estatuto após uma vida inteira de estudos. Com isso em mente, podemos passar para nossas considerações.

Não podemos negar que a democracia, sobretudo essa que temos e que não passa de um arremedo frágil, de fato não é mãe de todas as virtudes. As massas ignorantes elegem seus representantes e só. E o fazem no calor das circunstâncias e sob as mais variadas formas de manipulação. As duas principais são: o poder que o dinheiro confere aos candidatos pesadamente financiados e a construção e administração das ideias que habitam a mente dos indivíduos. Quem controla o dinheiro e as ideias nas democracias capitalistas controla o resultado do pleito.

A manipulação das ideias criou o antipetismo e este elegeu Bolsonaro, o mesmo que odeia e ataca diuturnamente a democracia. Esta mesma democracia que permitiu que ele chegasse ao poder. E eleito foi e ainda o seria porque possui uma boa máquina de propaganda que opera a manipulação da verdade cuja eficácia está assentada na boa fé e na ignorância das massas. Ignorância, essa, criada e perpetuada justamente pelo mau funcionamento democrático da nossa república.

Tendo isso em mente, proponho um desafio: usar Platão para interpretar o Brasil atual. Em quê Platão estaria correto?

Quando vemos que fakenews ou — chamemos pelo nome as coisas — as mentiras mais deslavadas orientam políticas de Estado, como prescrição de tratamento contra Covid-19; não uso de máscaras ou isolamento; hostilidade contra a política de vacinação; ataque ao currículo e conteúdos escolares; políticas pedagógicas, etc. Enfim, quando a manipulação da verdade passa a ser a técnica demagógica do governante, Platão parece estar certo.

 Quando vemos que de um lado do povo vozes gritam pelo pai infalível Lula e de outro pelo pai mitológico Bolsonaro, parece que a debilidade das crises da democracia e apelo aos líderes demagogos descritos por Platão estavam corretos. Mas não nos enganemos, há demagogos de centro também. E pior que estes só os frios, insípidos e calculistas tecnocratas dos mercados ou da administração pública. E por isso, uma pitada de político por vocação não faz mal a uma democracia sólida, como bem sabia Max Weber.

Não há ilusões! Uma democracia — sobretudo estas de fachada ou movidas por uma oligarquia de bastidores — fundada em massas ignaras pode produzir tantas tragédias como a pior das autocracias. Pois em nenhuma delas o poder será limitado pelo uso da razão e princípio universal e igualitarista do humanismo. Mas nenhum destes casos é o caso brasileiro. Vivenciamos hoje o pior dos cenários jamais imaginados por Platão. O pior do autoritarismo com o pior da vulgaridade demagógica.  

O que é mais pernicioso para a vida na pólis? Um governo autocrático de um déspota esclarecido ou o governo “democrático” de um déspota embotado? Falso dilema e quase um sofisma. O que precisamos mesmo é de uma democracia popular exercida por um povo cultivado e educado. O único problema é que o pressuposto para que isso ocorra é que antes já tenha ocorrido. Só assim as massas serão cônscias e cultivadas e saberão o que fazer com o poder a elas outorgado ainda que abstratamente.

Do contrário, continuarão inertes e manipuladas ao sabor dos ventos. E que no limite celebrarão de forma imunda e ridícula o único exercício de poder que possuem a cada dois anos: o poder de alienarem-se do poder, seja para uma súcia de oligarcas da política partidária, para plutocratas do mercado ou, pior, para um ignorante qualquer cuja campanha fora impulsionada por mentiras e pelo ódio ardilosamente plantado contra governos de esquerda. Afinal, sempre souberam que o julgamento do povo é mais rápido do que o julgamento dos tribunais... Numa democracia quem controla o povo, controla o poder. E o povo é controlado, graças à carência material e intelectual, por aquilo que Shakespeare descrevia como “o vil metal”.

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