sábado, 12 de junho de 2021

O que não me sai da lembrança, segue por herança

O pai de minha mãe, um português apaixonado pelo Brasil, dentre tantas de suas belas histórias, contou-me certa vez uma passagem que nunca me abandonou.
Ainda garoto, foi retirado de dentro de sua casa com um irmão e uma irmã e levado até um paiol que ficava nos fundos da propriedade. 
Feito de madeira, o paiol permitia, por entre frestas, enxergar a casa e a movimentação por lá.
Vô Antunes não entendeu quando a mulher, que deles cuidava, passou a levar mantimentos nesse lugar e a deixá-los trancados o tempo todo e por dias.
No entanto, em dado momento viu chegando pessoas diferentes e que retiraram da casa dois "embrulhos de lençol" grandes o suficiente para conter um ser humano em cada um.
Só mais tarde meu avô descobriu que ali saíram seu pai e sua mãe para serem enterrados.
Ele não se despediu dos pais.  Não deu tempo.  A gripe espanhola, avassaladora, os havia matado.
Meu avô e seu irmão, foram levados à casa de um tio, ali mesmo em Leiria, onde viveu por alguns anos.  A irmã, ele nunca soube do paradeiro.
Histórias como essas devem ter sido comuns no início do século 20, quando a pandemia nascida nos Estados Unidos assolou o mundo.
O que eu jamais poderia imaginar é que teria para contar aos meus netos, quando os tiver grandes o bastante para ouvirem o relato, que eu mesmo e seus pais passaríamos por algo semelhante.
Estamos há dois anos inteiros confinados, de certo modo, andando nas ruas com máscaras a proteger nossos rostos.  Sem poder abraçar, dar as mãos ou ver o sorriso na cara de alguém.
E o pior, contar nossos mortos diariamente e aos borbotões.
Lastimar a partida precoce que também separa famílias, amores e vidas cheias de sonhos e esperanças por realizar. 
Contar, já sem muito espanto, somas que superam estádios de futebol lotados, aviões inteiros em queda ou edifícios repletos de gente arrebatada e seguir adiante como se a vida estivesse normal. Insensibilidade ou costume? De qualquer modo, sinistro.
E não parece acabar.  Não se vislumbra o final, porque apesar dessa tragédia sem controle, aos brasileiros ainda cabe coisa pior.  Vivemos sob a égide de um projeto "maligno" que impede a reação.  Um louco empoderado por malucos, cercado de insanos que com ele governam, parece celebrar de jet-ski, moto ou a pé, sorrindo ou "tirando sarro", cada novo sepulcro aberto.
Enquanto isso, jovens desmotivados se emburram de tristeza e desconsolo por verem seus estudos atrasados, perspectivas adiadas.  Crianças presas sem parques, brincadeiras de rodas ou o que o valha. Pais e mães de família se subjugando em filas intermináveis por migalhas a restituir-lhes o que mais de 800 mil empresas fechadas acabaram por tirar-lhes.  A renda.
Esse é o cenário tétrico e histórico que vou relatar à minha descendência.  Mas claro, ainda não acabou.  Ainda não é tudo.
Sabe-se lá o que mais está por vir.
No último final de semana, a COVID que já tinha visitado parentes e amigos próximos, chegou enfim à minha casa.  Pessoas de meu convívio diário e por fim eu próprio.
Por enquanto muito desconforto em alguns sintomas até leves.  Mas um certo receio dos altos e baixos que essa doença traz consigo.  Os surpreendentes desdobramentos até que passe por completo nos intranquilizam.  O medo que antes era de ser contaminado, dobra agora quando é o de contaminar a quem amamos.
E pensar que tudo poderia ter sido evitado, diminuído caso 81 mensagens não tivessem sido desprezadas pelo tirano.  Caso o país que sempre foi ícone no controle de suas endemias e doenças, tivesse tido a sorte de um governo a prestigiar a ciência com verbas ou dotações.
Mas não.  Um cara que sequer se dignou a uma palavra de conforto à sua gente.  Que jamais visitou um hospital, tendo sido ele mesmo eleito por gente que acreditou numa facada duvidosa que ameaçou sua vida, enquanto jamais usou da mesma solidariedade com esse mesmo povo.
Ao convalescer eu devia apenas descansar, mas não.  Essa minha revolta só faz crescer. E claro, isso não faz bem a mim. Mas fazer o que?
Resta-me levar esse espírito de inquietude e indignação aos filhos dos meus filhos com as minhas  narrativas de avô, que se não tão fatídicas como a do meu, serão trágicas o suficiente para acompanhá-los pelas suas vidas afora como ocorreu comigo.

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