quinta-feira, 1 de julho de 2010

O menino do quadro negro

Minha cunhada, Vanessa Batista de Andrade, enviou este conto que escreveu com excelência.  Em tempos de copa na África, muito bem vindo.


Tão voraz era sua vontade de aprender e apreender o que estava a sua volta, mas como muitos de sua idade o que lhe era permitido carregar, se reduzia apenas a um pedaço de giz e aquela pequena lousa, sua irmã de muitas horas leves, mas de momentos tão duros e pesados que só de lembrá-los, o ar lhe faltava.
Hoje a realidade já era outra, ele podia prender o mundo em pequenos pedaços de papel, não havia problemas de querê-lo prender apenas em seus pensamentos, pois em tempos passados era a única forma de não se sentir sozinho, suas memórias lhe faziam companhia e com elas sentimentos contraditórios, que lhe inundavam a alma. Revoltado com tudo aquilo escrevia por horas a fio para libertar aquele monstro que queria lhe calar, seus dedos já se apresentavam gastos, pois com saliva rabiscava o quadro na tentativa de preservar aquele pedaço de giz para algum aprendizado especial.
No fundo, ele sabia os “por quês”, e principalmente o “por que”, de apenas um pedaço de giz e um pequeno quadro constituírem seu material escolar. Desde pequeno sempre fora muito esperto, captava as coisas de longe, e agora nesta situação de sua sociedade de dupla cor, sabia que a intenção era deixar seu povo com uma memória tão curta que restasse apenas a resignação perante aquilo tudo. E por isso, se mantinha sempre atento aos acontecimentos cotidianos, para que no futuro pudesse de alguma forma mudar todo absurdo que se apresentava como natural.
E agora ele pensava, após tantos anos de prisão para mentes e corpos, o povo se molda e pouco pode esperar por grandes transformações, já dizia a antiga filósofa , após anos de contenção um arbusto se dobra a vontade de seu paisagista, era assim com os bonsais japoneses, e era assim com os seus. De tanto apanhar um animal aprende o que deve ser feito e quais são seus limites, e foi exatamente esta técnica usada em sua pátria para apartar pessoas.
Hoje sabia que isto, não era restrito ao tempo presente ou a sua sociedade, já há tempos remotos, os direitos eram apenas de poucos, o resto se contentava em colaborar com a produção social, mesmo que às vezes ficasse sem sua parte na partilha dos bens produzidos. Violência e dor, sempre foram empregados como recursos fundamentais no processo de organização e assim foi em sua infância. Contudo ainda hoje acordava em sobressaltos, com o coração disparado ao ser invadido por sonhos que insistiam em penetrar sua paz noturna.
Os meios de comunicação atuais, quando tratavam do ocorrido não conseguiam exprimir tudo aquilo que ele vira e sentira na pele, suas perdas, seus mortos, suas dores e seus ais. Hoje a notícia aparecia morna, como se tudo tivesse ficado para trás, juntamente com muitos de sua família e amigos, que agora jaziam sob a mãe terra que os acalentava no último repouso.
Para ele, nada o fazia esquecer quem era, e o que contemplara de seus primeiros anos à idade adulta, e se isso, às vezes ficasse esmaecido em sua mente, quando seus olhos furtivamente escapavam sobre uma superfície refletora de um vidro qualquer, e ele se deparava com sua imagem, não existia palavras amenas que o fizesse sentir diferente todo aquele processo que havia passado, já que a se ver no reflexo, recordava tudo o que acontecera em vermelho sangue e em preto-e-branco.
As leis de seu mundo lhe restringiram a compreender a realidade por meio de apenas três cores, uma delas era glorificada (o branco), a outra devia ser negada, subjugada e muitas vezes eliminada (o preto), para que a ultima cor se aflorasse por meio da contraditória violência do real (o vermelho). E com tristeza ele pensava hoje sobre aquele menino que foi um dia, que na flor da idade quando o mundo se estendia multicor a sua frente, teve que se abster do arco-íris para sentir o amargo cotidiano em branco e preto.
Não era somente a cor que lhe fora privado, seu olfato por anos teve negado os cheiros sublimes, porque tivera que viver em meio à privação sanitária, e as sombras eram constantes nos entardeceres, pois os recursos desenvolvidos pela humanidade como a luz elétrica era restrita e não permitida a todos de forma equânime, somente a lua cheia e algumas crescentes iluminavam os caminhos e em tornos das casas de sua comunidade, quando não eram surpreendidos no meio da noite pelo calor vermelho do fogo das tochas que queimavam as casas e corpos a sua volta.
Quantas vezes ele retratou o que viu em seu pequeno quadro, imagens de diversas nuances que traziam saudades recheadas de sentimentos com pequenos prazeres inefáveis: os conselhos dos pais aos filhos que aprontavam peripécias nas ruas; senhores de idade avançada sentados em frente a suas casas relembrando os momentos em que ainda jovens se aventuravam nas mais diferentes histórias, e agora repassavam tais experiências às novas gerações, que sentados aos pés dos “antigos” ouviam atentamente e se deslumbravam a cada palavra; os sorrisos de sua mãe, que como pérolas preenchiam sua vida de riquezas. Todavia, em certo momento de sua história, seu pequeno amigo começou a receber imagens densas e carregadas de angustia: altos brados sendo emitidos da boca vociferante de um homem a uma senhora de idade, que sem querer ultrapassou o limite permitido; cacetes que bramiam um som torturante ao impacto com a pele de um estudante que teimava em não se render as leis impostas; o soluçar de sua mãe, ao ver seu irmão sendo arrastado de casa pelos homens da lei etc.
Como dizer que agora tudo era festa? Como esquecer sua história recente? E dizer que o país hoje é multicor? Sempre o foi, mas sempre lhe fora negado tal impressão do real, o que era permitido era obedecer às regras, baixar a cabeça e entender sua posição de inferioridade perante aos outros iguais a si, mas diferentes devido à coloração de suas peles.
Quando pequeno conheceu um homem, um sapidus , que dizia que todos eram irmãos, bastava olhar para o jardim para entender isso, cada flor e planta eram diferentes, mas cumpriam uma única função, todos embelezavam o dia a dia com suas formas diferenciadas. Pobre homem, foi um dos primeiros a ser levado, diziam que ele deveria ter se calado a afrontar os mais fortes, porque a tendência no jogo de forças era sempre romper o lado mais fraco.
Mais fraco? Mas não somos nós descendentes dos grandes caçadores de outrora? – pensava ele. E então, onde está o gene que nos liga a estes grandes homens? Não é isso que a ciência demonstra através dos fósseis? Será que esqueceram isso? Ou melhor, nunca souberam verdadeiramente. E como poderiam, se como já sabem, quando o quadro ficava cheio de palavras escritas, tinham que apagá-lo para novamente enche-lo de novas palavras, e assim era com todas as crianças na escola, como seria possível reter conhecimentos mais profundos se sua realidade imediata não lhes permitia. Juntamente a isso a miséria já os sentenciava, com problemas de apreensão devido à falta de alimento e outros problemas mais graves.
Após anos de espera e de revolta, de luta e massacre do povo – que era a maioria, finalmente acabaram olhando e ouvindo esta parte do mundo. E após muitos protestos e acordos com órgãos internacionais, o “Mandiba” fora solto e o menino agora grande, pode sonhar com algo novo e quiçá colorido. Quiçá, porque não era certeza de mudança realmente profunda. A pergunta era: Será que a diferença realmente seria sobrepujada pela idéia de igualdade? Diferença que se mostrava visualmente pela cor de suas peles, mas que econômica e socialmente era sentida pela privação de tudo um pouco: de comida, de saúde, de educação e de respeito.
O tempo foi passando e alguns espaços foram realmente aceitando o diverso, a convivência foi sendo menos agressiva, contudo milhares dos seus estão agora sendo engolidos por um monstro que é invisível no cotidiano, mas que silenciosamente engolfa vidas e mais vidas, por meio de um vírus mortal. Outro problema que se apresenta de forma avassaladora, é que milhares como ele estão desempregados e vivem hoje nos mesmos bantus de antes, agora as grades que antes separavam os homens dos animais nos parques, foram empregadas para defender os condomínios luxosos dos antigos senhores. Então, pensava ele: a participação política que foi tão almejada por todos os não cidadãos, fora apenas um subterfujo para amenizar a ira daqueles que conseguiam romper com as técnicas de domesticação.
Neste momento o nosso menino olha atônito sua pátria, que parece sofrer de um mau súbito de loucura, como se: “o rei estivesse nu e não soubesse”, pois milhões de investimentos foram aplicados em campos de futebol e locais para as grandes seleções ficarem, mas se atravessarmos algumas ruas nas proximidades de tais construções, encontramos milhares de casebres e favelas, e pessoas que como em outros tempos estão apartadas.
Todavia o mundo os olha, os contempla e se emociona com a mistificação criada pela mídia, que vende uma imagem colorida e esportiva, na qual a competição é salutar, e não seletiva, na qual a proximidade entre os homens de cores diferentes não representa perigo, a não ser que estejam dentro de um campo correndo atrás da bola.
E assim neste dias recentes este menino que sobreviveu a tudo aquilo, escreve estas palavras, porque não consegue mais apenas guardá-las dentro de si, não consegue guardar para si o entendimento desta brutal construção do real a sua volta que lhe sufoca, e ele precisa gritar para o mundo, mas sua voz já é falha, e suas forças se esvaem como o tempo, por não possuir mais seu antigo quadro negro, digita este texto como forma de protesto.

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