Prof. Dr. Marcelo Gomes
Doutor em Sociologia
Gritos engasgados de mais de 300 mil famílias que perderam alguém nesta pandemia ecoam no silêncio de nossas ruas. Por maiores que sejam os burburinhos das redes sociais — estas Ágoras virtuais contemporâneas — das passarelas da democracia, nossas ruas, o seu bloco principal está ausente, o povo. A manifestação popular se reduz ao balanço dentro do transporte coletivo na ânsia desesperada de manter seu ganha-pão e, sem apelo ou ajuda, ir para o trabalho tal como o gado vai espremido nas carrocerias em direção ao abate. E o faz desse modo indigno, uma vez que sequer uma mísera instrução segura e uma máscara descente nosso povo recebeu de seu mais tresloucado governante. Ao invés de segurança, o trabalhador adoentado recebeu escárnio, desinformação, remédios ineficazes, mentiras e desdém. Foi chamado de fraco, covarde e maricas. Vemos, horrorizados, nosso governante simbolicamente cuspir em nossos mortos.
O bobo da corte com suas piadas, risos paranoicos, suas peças desprezíveis e falas chocantes ganhou notoriedade no feudo. Cansou das sombras palacianas e decidiu aspirar à condição de rei. Mas não tinha nenhuma majestade, apenas ódio por todos, pois em seu íntimo reconhece o rasgo de caráter que traz consigo por detrás do olhar daqueles que contemplam essa criatura vil e teratológica cuja serventia se restringe a uma distração vulgar nas noites moribundas. O traço patológico de um homem transbordou-se para um governo patológico. A pandemia do Sars-cov2 atinge o mundo inteiro, mas no Brasil alia-se a uma necropolítica. E é nas noites de quinta que a besta se encontra com seus comensais para devorar os nossos corpos vulneráveis junto à abjeção do inominável. A marca mais conspícua do fascismo é o fascínio. Neste caso, o fascínio pela morte e pela destruição. O fascismo festeja a tanatolatria e, de joelhos, acende incensos no altar de Anúbis. Freud descrevera a pulsão de vida e a pulsão de morte e no Brasil de hoje ficou evidente para todos aonde se chega quando movidos pelo segundo destes desejos.
Tudo começa com uma arminha gestual, passa para uma fala como “vamos metralhar a petralhada” ou “fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”, depois edita o decreto das armas e rejeita compra de vacinas. Pois bem, chegamos à marca de dez vezes mais que o prometido e estamos indo para os 400 mil mortos. E não, não é um exagero dizer que o bufão que se sentou no trono é responsável por isso. Até as pedras deste reino já sabem que o grande responsável pelo agravamento de nossa situação é o presidente. Seja porque receita criminosamente o uso de medicamentos sabidamente ineficazes, seja porque demitiu ministros da saúde que não prevaricavam, estimulou aglomeração, desdenhou de máscaras e colocou todos os óbices possíveis para a aquisição das vacinas. Consta que seu filho recomendou que enfiássemos as máscaras no reto. Recentemente uma pesquisa do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da USP identificou por detrás de centenas de normas do governo federal uma clara tentativa de sabotar o combate à pandemia, incluindo o estímulo deliberado ao contágio. Foi ainda denunciado no Tribunal Penal de Haia. Se este homem não é criminoso então o conceito de criminalidade deve desaparecer dos dicionários. E aqui nem se menciona o incriminador fato de que o suposto assassino de Marielle Franco esteve no condomínio deste bufão procurando por ele no mesmo dia do assassinato desta vereadora, uma rival de seu filho. E ali esteve, segundo reportagens, umas doze vezes.
É uma vergonha e uma tragédia para nossa geração que este homem ainda esteja na presidência e alguém lhe dê ouvidos. Nunca foi mais do que aquilo que é: um bobo da corte doentio e repugnante que merece nosso desprezo e, no caso de um dia ser julgado e condenado, estar detrás das grades. Todavia, para que isso ocorra é preciso que seja apeado do trono. Enquanto lá estiver, os bajuladores e aduladores do poder continuarão a reverenciá-lo, fazendo vista grossa a todos os seus atos hediondos, como o fazem hoje muitos dos militares que lá estão. E o fazem não porque nele creem, mas porque é o preço a pagar por suas prebendas e cargos. O leite continua escorrendo e por isso estes sequazes continuam sorvendo aquilo que é obtido do suor e do sangue de nosso povo tão ultrajado.
Essa malta de bajuladores irresponsáveis precisa ser acordada pelas manifestações democráticas e populares de um povo que abdicou da política em nome da autopreservação durante a pandemia. Pois nós morreremos mais ficando em silêncio do que se nos expusermos vigorosamente contra este mar de calamidades. E o que faz nosso povo mais estéril e passivo? Seria o medo da morte por Covid19 que nos mantém com medo das ruas e do exercício saudável da cidadania? Ou seriam os séculos de uma pedagogia negativa na qual ao povo jamais fora permitido participar efetivamente da democracia por mais de alguns anos? O fato é que, não satisfeito em ultrapassar todos os limites, nosso bufão resolveu uma última cartada e cometeu o mais hediondo dos crimes que foi tentar um autogolpe e atentar contra a frágil democracia de nosso país. Não podemos assistir um presidente condenando pessoas à morte, tanto quanto nossa democracia, sem exigir seu impedimento no parlamento. É nosso dever enquanto cidadãos cônscios do desastre deste governo.
Outrora, na famosa obra trágica shakespeariana, numa Dinamarca marcada pela infâmia e degradação similar ao Brasil de hoje, o príncipe Hamlet faz um lamento ante o horror. Diz ele no trecho imortal do qual muitos só conhecem o início:
Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas de um ultrajante fardo, ou tomar armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo?[...] Sim, eis aí a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa! Porque, senão, quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno, quando ele próprio pudesse encontrar quietude com um simples estilete? Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, ao invés de nos atirarmos a outros que desconhecemos? E é assim que a consciência nos transforma em covardes e é assim que o primitivo verdor de nossas resoluções se estiola na pálida sombra do pensamento e é assim que as empresas de maior alento e importância, com tais reflexões, desviam seu curso e deixam de ter o nome de ação.
Essa passagem pode ser considerada como uma ode à ação, seja o suicídio ou a luta fratricida. Mas não precisamos de nenhuma delas. Atingimos um estágio civilizatório superior e hoje temos o arbítrio de um Estado de Direito que nos garante instrumentos para impedir patifes e candidatos a tiranos; impedir criminosos e todo aquele governante que atente contra nossas vidas e contra a democracia de nosso país. Portanto, cobremos dos poderes instituídos a defesa de todos nós contra esse mar de calamidades provocado por estarmos à mercê de um evidente despreparado e irresponsável no governo. Isso é um direito defendido até mesmo pelo liberal John Locke. Sair às ruas para protestar com responsabilidade e cuidado talvez seja mais prudente do que aguardar a morte chegar por uma pandemia descontrolada por estarmos nas mãos de negacionistas. O impeachment hoje é tão necessário quanto a vacina e o lockdown. E quem diz isso são as ciências, tanto a epidemiologia quanto a ciência política. Lembremos a este ser ignominioso que 2021 não é mais 1964.
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