quinta-feira, 30 de março de 2023

QUEM TEM CARA DE LADRÃO?

 




Prof. Dr.

Marcelo Gomes





O fascismo brasileiro, reeditado de tempos em tempos desde o período de Plínio Salgado, guarda similaridade com quase todos os fascismos no mundo. É violento, supremacista e autoritário. Mas não apenas isso. Também é misógino, racista, hipócrita, corrupto, irracionalista, mentiroso e asqueroso, como todo bom fascismo. E se é assim, por que é tão difícil combater o fascismo perante os “homens de bem”? A resposta guarda complexidades, mas também algo simples. O fascismo representa uma alternativa fácil às tratativas humanas e por isso ele é muito sedutor, sobretudo aos grupos mais limitados e recalcados.   Fazer política democrática e humanista dá muito trabalho. O fascismo resolve isso facilmente ao abolir a mediação política que não esteja calcada na destruição e eliminação dos grupos e teses concorrentes. Perdendo na argumentação e racionalidade, preferem abraçar o atalho da violência. Outro fator importante da sua difícil erradicação é sua instrumentalidade para as classes proprietárias. Em que pese a democracia burguesa apresentar uma miríade de ilusões sobre a real autonomia do indivíduo, a liberdade dos processos decisórios ou a participação no poder, ela apresenta brechas pelas quais as classes mais baixas podem atuar, desde que organizadas devidamente. O fascismo é sempre uma carta na manga das classes proprietárias.

                   Mas e a decantada imprensa livre e republicana? Não é atacada no fascismo? Não tem como escopo ético a denúncia das injustiças e perversidades do sistema? Sim, a imprensa cumpre certo papel civilizatório na sociedade burguesa, mas tendo como limite claro a propriedade privada e o lucro. Como empresa, a imprensa não transgride seus próprios interesses e por isso não é raro fazer vista grossa a todos os absurdos do corolário do sistema capitalista de exploração. E também não é raro fazer vista grossa aos absurdos e escândalos do fascismo. E no Brasil os escândalos são mais escandalosos.

                   Há anos estamos assistindo a um golpe das elites brasileiras contra nossa democracia. Arquitetaram um impeachment fraudulento contra uma presidente que não cometeu qualquer deslize ético, criminal ou contábil, como ficou claro nas declarações do ministro do TCU ao dizer que de fato não houve “pedaladas” no governo Dilma. O mesmo ocorrendo com o arquivamento pelo MPF desse mesmo processo. Também assistimos a recomposição desta elite econômica e política que agiu rapidamente após o golpe para apertar ainda mais o sistema previdenciário e afrouxar quase à extinção das leis trabalhistas. Os superlucros e a superexploração estavam novamente garantidos. Aí assistimos à ascensão de um xucro fascista ao poder. Uma mistura de bufão como Berlusconi, ignorante como Bush filho e truculento como todo bom fascista, ainda que sua truculência só apareça nos momentos em que está de fato se sentindo seguro. Fora isso, um conspícuo covarde, como evidencia sua biografia atual e de antanho. Aí, pelas mãos e dolo desse fascista, assistimos nossos amigos e parentes morrerem em parte pela doença e em parte pela ignorância e influência de quem, como presidente, cometeu deliberadamente esse crime. Charlatanismo ao prescrever cloroquina e panaceias. Atentar contra a saúde pública quando promoveu a propagação do corona vírus e atuou contra a vacinação ao negligenciar sua compra e, depois, ao propagar mentiras sobre sua eficácia e consequências. Quis associar a AIDS à vacinação além de outros absurdos. Mas também assistimos ao desmonte do Estado em áreas fundamentais. Assistimos à militarização do Estado Brasileiro e distribuição de prebendas. Afinal, a política fascista não tem projeto claro que não seja a perpetuação do poder e a destruição e desintegração das instituições e vida social civilizada. Os gangsteres assaltaram o poder e toda espécie de atividades de contravenção foram autorizadas. O meio-ambiente agonizou como os doentes da Covid19.

                   Ao fim do processo que ainda está em curso, pudemos assistir, por parte desses grupos, a uma desesperada tentativa fraudulenta de permanecer no poder, com direito a compra de votos escancarada, abuso de poder político e econômico, ameaça a trabalhadores, mentiras contra as eleições e até assassinatos de opositores. Ainda assim perderam. Mas assistiríamos ainda à relutância em aceitar a democracia por parte deles. Bloquearam estradas, sitiaram quartéis numa mise en scene autopromovida e invadiram os três poderes da república no dia 8 de janeiro. E mesmo com seu “líder” já homiziado nos Estados Unidos, descobrimos que o rastro de destruição era ainda maior. Houve de fato um genocídio arquitetado contra o povo Ianomami. Os escândalos e possíveis crimes da família Bolsonaro só aumentaram. E finalmente descobrimos que isso pode ser apenas a ponta do iceberg. Recentemente a notícia de que a família Bolsonaro recebeu e tentou desviar joias no valor de milhões de dólares engrossou a lista de delitos que poderão ser incluídos ao rol de crimes de lesa-pátria. Afinal, estamos apenas começando a investigar o volume de joias que foram recebidas, bem como investigar os motivos para tão inédito “gesto de generosidade” por parte de autoridades da Arábia Saudita e Emirados Árabes. E os lotes de joias desviadas não param de aparecer.

                   Mas a pergunta é: quem de fato se escandaliza? No dia de ontem, pudemos ouvir, estarrecidos, o defensor da família Bolsonaro, Ciro Nogueira. Em uma tentativa jocosa buscou retirar a sombra de culpa criminosa de Jair Bolsonaro. E digo culpa e não suspeição porque Bolsonaro e Michele admitiram a posse das joias. Pelo visto, creem na absolvição pelo tribunal da opinião publicada quando admitem a posse e providenciam a devolução do produto desviado ou furtado, a saber. Como um bom e cínico paladino, Ciro Nogueira ressuscitou as ultrapassadas teses do médico Cesare Lombroso, para quem o crime era inato e o criminoso exibia nas suas feições e anatomia a criminalidade como estigmas atávicos. Ciro alegou que não adiantaria atribuir culpa a Bolsonaro, uma vez que “todos” sabem que o ex-presidente não tem “cara de criminoso” (sic). E o argumento parece palatável para muitos dos amantes civilizados do fascismo, uma vez que o racismo estrutural e o sistema carcerário brasileiro parecem mesmo estabelecer um vínculo entre feições étnico-raciais e criminalidade. Para aqueles, talvez a inocência exale da pele branca tanto quanto a culpa exala da tez de quem vem para São Paulo num pau de arara. Para esse sistema de justiça, a morosidade dos processos e o princípio da ampla defesa são contraproducentes. Daí que atalhos lambrosianos aplicados por não-técnicos de teorias anacrônicas e pseudocientíficas são complacentemente aceitos. No universo ideológico dessa elite podre e hipócrita, o branco de olhos claros não pode ser bandido e punguista. Não pode ser assassino ou genocida. Então sem a menor vergonha decidem quem é culpado ou inocente, fornecendo o assombroso aval para aquele que, não tendo “cara de criminoso”, pode praticar seus crimes às claras. Mas pasmem, não os absolvem nos tribunais, mas nas capas dos jornais. Para quê precisamos de tribunais e magistrados? Bastam as declarações dessa mesma elite que faz vista grossa tanto aos crimes do fascismo quanto aos crimes e roubos de indivíduos que comprazem com seus interesses de classe. O ex-juiz Sérgio Moro também não teria absolvido numa coletiva de imprensa os crimes de caixa dois confessados por Onix Lorenzoni? E a simples declaração não serviu de alento e funcionou como absolvição na prática? Poucos se moveram incomodados com tudo isso, pois os donos do poder são cúmplices da abominação jurídica e abominação política quando lhes convém. No entanto, para o justo, muitas vezes a hipocrisia é mais odiosa do que o próprio crime. O silêncio reina constantemente na grande imprensa e nos salões dos tribunais. E o próprio Sérgio Moro agora conta com o silêncio da Mídia a respeito das denúncias documentadas de Tacla Duran que acusa Moro e a lava-jato de terem-no extorquido e exigido vínculos advocatícios com o sócio de Rosangela Moro.

                   A lição parece clara. A depender da cor de sua pele, da sua classe social, da sua designação partidária e dos interesses que seu grupo defende, qualquer crime, por mais hediondo que seja, pode ser cometido impunemente no Brasil de ontem e de hoje. Mas como essa leniência espúria não é um dado da natureza, cabe a nós todos que temos um projeto de nação, uma ética humanista e uma vida coletiva e civilizada a defender não deixar o silêncio reinar sobre as vítimas das nefastas ações criminosas dos fascistas. “Anistia a criminosos nunca mais” deve ser o lema. A hipocrisia é uma vergonha. A cumplicidade é uma vergonha. E ambas não devem mais ser admitidas. Para instaurarmos um novo pacto social é preciso que os crimes e criminosos sejam todos punidos dentro das leis. Ainda que alguns acreditem que de fato que podem rasgar o Código Penal e substituí-lo por manuais farsescos de medicina lambrosiana ou por silêncio no horário nobre.

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