Prof. Dr.
Marcelo Gomes
O fascismo brasileiro, reeditado de tempos em tempos desde o período de Plínio Salgado, guarda similaridade com quase todos os fascismos no mundo. É violento, supremacista e autoritário. Mas não apenas isso. Também é misógino, racista, hipócrita, corrupto, irracionalista, mentiroso e asqueroso, como todo bom fascismo. E se é assim, por que é tão difícil combater o fascismo perante os “homens de bem”? A resposta guarda complexidades, mas também algo simples. O fascismo representa uma alternativa fácil às tratativas humanas e por isso ele é muito sedutor, sobretudo aos grupos mais limitados e recalcados. Fazer política democrática e humanista dá muito trabalho. O fascismo resolve isso facilmente ao abolir a mediação política que não esteja calcada na destruição e eliminação dos grupos e teses concorrentes. Perdendo na argumentação e racionalidade, preferem abraçar o atalho da violência. Outro fator importante da sua difícil erradicação é sua instrumentalidade para as classes proprietárias. Em que pese a democracia burguesa apresentar uma miríade de ilusões sobre a real autonomia do indivíduo, a liberdade dos processos decisórios ou a participação no poder, ela apresenta brechas pelas quais as classes mais baixas podem atuar, desde que organizadas devidamente. O fascismo é sempre uma carta na manga das classes proprietárias.
Mas e a decantada imprensa
livre e republicana? Não é atacada no fascismo? Não tem como escopo ético a
denúncia das injustiças e perversidades do sistema? Sim, a imprensa cumpre
certo papel civilizatório na sociedade burguesa, mas tendo como limite claro a
propriedade privada e o lucro. Como empresa, a imprensa não transgride seus
próprios interesses e por isso não é raro fazer vista grossa a todos os
absurdos do corolário do sistema capitalista de exploração. E também não é raro
fazer vista grossa aos absurdos e escândalos do fascismo. E no Brasil os
escândalos são mais escandalosos.
Há anos estamos assistindo a
um golpe das elites brasileiras contra nossa democracia. Arquitetaram um
impeachment fraudulento contra uma presidente que não cometeu qualquer deslize
ético, criminal ou contábil, como ficou claro nas declarações do ministro do
TCU ao dizer que de fato não houve “pedaladas” no governo Dilma. O mesmo
ocorrendo com o arquivamento pelo MPF desse mesmo processo. Também assistimos a
recomposição desta elite econômica e política que agiu rapidamente após o golpe
para apertar ainda mais o sistema previdenciário e afrouxar quase à extinção
das leis trabalhistas. Os superlucros e a superexploração estavam novamente
garantidos. Aí assistimos à ascensão de um xucro fascista ao poder. Uma mistura
de bufão como Berlusconi, ignorante como Bush filho e truculento como todo bom
fascista, ainda que sua truculência só apareça nos momentos em que está de fato
se sentindo seguro. Fora isso, um conspícuo covarde, como evidencia sua
biografia atual e de antanho. Aí, pelas mãos e dolo desse fascista, assistimos
nossos amigos e parentes morrerem em parte pela doença e em parte pela
ignorância e influência de quem, como presidente, cometeu deliberadamente esse
crime. Charlatanismo ao prescrever cloroquina e panaceias. Atentar contra a
saúde pública quando promoveu a propagação do corona vírus e atuou contra a
vacinação ao negligenciar sua compra e, depois, ao propagar mentiras sobre sua
eficácia e consequências. Quis associar a AIDS à vacinação além de outros
absurdos. Mas também assistimos ao desmonte do Estado em áreas fundamentais.
Assistimos à militarização do Estado Brasileiro e distribuição de prebendas.
Afinal, a política fascista não tem projeto claro que não seja a perpetuação do
poder e a destruição e desintegração das instituições e vida social civilizada.
Os gangsteres assaltaram o poder e toda espécie de atividades de contravenção
foram autorizadas. O meio-ambiente agonizou como os doentes da Covid19.
Ao fim do processo que ainda
está em curso, pudemos assistir, por parte desses grupos, a uma desesperada
tentativa fraudulenta de permanecer no poder, com direito a compra de votos
escancarada, abuso de poder político e econômico, ameaça a trabalhadores,
mentiras contra as eleições e até assassinatos de opositores. Ainda assim
perderam. Mas assistiríamos ainda à relutância em aceitar a democracia por
parte deles. Bloquearam estradas, sitiaram quartéis numa mise en scene autopromovida e invadiram os três poderes da
república no dia 8 de janeiro. E mesmo com seu “líder” já homiziado nos Estados
Unidos, descobrimos que o rastro de destruição era ainda maior. Houve de fato
um genocídio arquitetado contra o povo Ianomami. Os escândalos e possíveis
crimes da família Bolsonaro só aumentaram. E finalmente descobrimos que isso
pode ser apenas a ponta do iceberg. Recentemente a notícia de que a família
Bolsonaro recebeu e tentou desviar joias no valor de milhões de dólares
engrossou a lista de delitos que poderão ser incluídos ao rol de crimes de
lesa-pátria. Afinal, estamos apenas começando a investigar o volume de joias
que foram recebidas, bem como investigar os motivos para tão inédito “gesto de
generosidade” por parte de autoridades da Arábia Saudita e Emirados Árabes. E
os lotes de joias desviadas não param de aparecer.
Mas a pergunta é: quem de fato
se escandaliza? No dia de ontem, pudemos ouvir, estarrecidos, o defensor da
família Bolsonaro, Ciro Nogueira. Em uma tentativa jocosa buscou retirar a
sombra de culpa criminosa de Jair Bolsonaro. E digo culpa e não suspeição
porque Bolsonaro e Michele admitiram a posse das joias. Pelo visto, creem na
absolvição pelo tribunal da opinião publicada quando admitem a posse e
providenciam a devolução do produto desviado ou furtado, a saber. Como um bom e
cínico paladino, Ciro Nogueira ressuscitou as ultrapassadas teses do médico
Cesare Lombroso, para quem o crime era inato e o criminoso exibia nas suas
feições e anatomia a criminalidade como estigmas atávicos. Ciro alegou que não
adiantaria atribuir culpa a Bolsonaro, uma vez que “todos” sabem que o
ex-presidente não tem “cara de criminoso” (sic). E o argumento parece palatável
para muitos dos amantes civilizados do fascismo, uma vez que o racismo
estrutural e o sistema carcerário brasileiro parecem mesmo estabelecer um
vínculo entre feições étnico-raciais e criminalidade. Para aqueles, talvez a
inocência exale da pele branca tanto quanto a culpa exala da tez de quem vem
para São Paulo num pau de arara. Para esse sistema de justiça, a morosidade dos
processos e o princípio da ampla defesa são contraproducentes. Daí que atalhos
lambrosianos aplicados por não-técnicos de teorias anacrônicas e pseudocientíficas
são complacentemente aceitos. No universo ideológico dessa elite podre e
hipócrita, o branco de olhos claros não pode ser bandido e punguista. Não pode
ser assassino ou genocida. Então sem a menor vergonha decidem quem é culpado ou
inocente, fornecendo o assombroso aval para aquele que, não tendo “cara de
criminoso”, pode praticar seus crimes às claras. Mas pasmem, não os absolvem nos
tribunais, mas nas capas dos jornais. Para quê precisamos de tribunais e
magistrados? Bastam as declarações dessa mesma elite que faz vista grossa tanto
aos crimes do fascismo quanto aos crimes e roubos de indivíduos que comprazem
com seus interesses de classe. O ex-juiz Sérgio Moro também não teria absolvido
numa coletiva de imprensa os crimes de caixa dois confessados por Onix
Lorenzoni? E a simples declaração não serviu de alento e funcionou como
absolvição na prática? Poucos se moveram incomodados com tudo isso, pois os
donos do poder são cúmplices da abominação jurídica e abominação política
quando lhes convém. No entanto, para o justo, muitas vezes a hipocrisia é mais
odiosa do que o próprio crime. O silêncio reina constantemente na grande
imprensa e nos salões dos tribunais. E o próprio Sérgio Moro agora conta com o
silêncio da Mídia a respeito das denúncias documentadas de Tacla Duran que
acusa Moro e a lava-jato de terem-no extorquido e exigido vínculos advocatícios
com o sócio de Rosangela Moro.
A lição parece clara. A depender
da cor de sua pele, da sua classe social, da sua designação partidária e dos
interesses que seu grupo defende, qualquer crime, por mais hediondo que seja,
pode ser cometido impunemente no Brasil de ontem e de hoje. Mas como essa
leniência espúria não é um dado da natureza, cabe a nós todos que temos um
projeto de nação, uma ética humanista e uma vida coletiva e civilizada a
defender não deixar o silêncio reinar sobre as vítimas das nefastas ações
criminosas dos fascistas. “Anistia a criminosos nunca mais” deve ser o lema. A
hipocrisia é uma vergonha. A cumplicidade é uma vergonha. E ambas não devem
mais ser admitidas. Para instaurarmos um novo pacto social é preciso que os
crimes e criminosos sejam todos punidos dentro das leis. Ainda que alguns
acreditem que de fato que podem rasgar o Código Penal e substituí-lo por
manuais farsescos de medicina lambrosiana ou por silêncio no horário nobre.
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