Islândia: do ardor revolucionário à descrença
"Manifestações derrubaram governo e prenderam
banqueiros no início da crise
Por João Moreira Salles
Ocorreu na mesmíssima Europa (no sentido geopolítico), num país com a democracia provavelmente mais antiga do mundo, cujas origens remontam ao ano 930, e que ocupou o primeiro lugar no relatório da ONU do Índice de Desenvolvimento Humano de 2007/2008. Adivinhais de que país se trata? Estou seguro de que a maioria não tem nem ideia, como não a tinha eu até que tomei conhecimento por acaso (apesar de ter estado ali em 2009 e 2010). Trata-se de Islândia, onde se fez demitir a um governo ao completo, nacionalizaram-se os principais bancos, decidiu-se não pagar a dívida que estes criaram com Grã-Bretanha e Holanda por causa de sua execrável política financeira e se acaba de criar uma assembleia popular para reescrever a sua constituição.
E todo isso de forma pacífica: a base de caçarola, gritos e certeiro lançamento de ovos. Esta foi uma revolução contra o poder político-financeiro neoliberal que nos conduziu até a crise actual. Aqui está o motivo por que não se deram a conhecer estes factos durante dois anos ou se informou frivolamente e de passagem: Que passaria se o resto de cidadãos europeus tomasse exemplo? E com isto também confirmamos, uma vez mais por se ainda não estava claro, ao serviço de quem estão os meios de comunicação e como nos restringem o direito à informação na plutocracia globalizada de Planeta S.A.
Esta é, brevemente, a história dos factos:
- - No final de 2008, os
efeitos da crise na economia islandesa são devastadores. Em Outubro
nacionaliza-se Landsbanki, principal banco do país. O governo britânico
congela todos os activos da sua subsidiaria IceSave, com 300.000 clientes
britânicos e 910 milhões de euros investidos por administrações locais e
entidades públicas do Reino Unido. A Landsbanki seguir-lhe-ão os outros
dois bancos principais, o Kaupthing e o Glitnir. Seus principais clientes
estão nesse país e na Holanda, clientes aos que seus estados têm que
reembolsar suas poupanças com 3.700 milhões de euros de dinheiro público.
Por então, o conjunto das dívidas bancárias de Islândia equivale a várias
vezes seu PIB. Por outro lado, a moeda desaba-se e a carteira suspende sua
actividade depois de um afundamento de 76%. O país está em bancarrota.
- - O governo solicita
oficialmente ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que aprova um
empréstimo de 2.100 milhões de dólares, completado por outros 2.500
milhões de alguns países nórdicos.
- - Protestantes em frente
ao parlamento em Reykjavik sempre a aumentar. Em 23 de Janeiro de 2009
convocam-se eleições antecipadas e três dias depois, as caçaroladas já são
multitudinárias e provocam a demissão do primeiro-ministro, o conservador
Geir H. Haarden, e de todo seu governo em bloco. É o primeiro governo que
cai vítima da crise mundial.
- - 25 de Abril
celebram-se eleições gerais das que sai um governo de coalizão formado
pela Aliança Social-democrata e o Movimento de Esquerda Verde, encabeçado
pela nova Primeira Ministra Jóhanna Sigurðardóttir.
- - Ao longo de 2009
continua a péssima situação econômica do país e no ano fecha com uma queda
do PIB de 7%.
- - Mediante uma lei
amplamente discutida no parlamento propõe-se a devolução da dívida a
Grã-Bretanha e Holanda mediante o pagamento de 3.500 milhões de euros,
soma que pagarão todas as famílias islandesas mensalmente durante os
próximos 15 anos ao 5,5% de interesse. Os cidadãos voltam à rua e solicitam
submeter à lei a referendo. Em Janeiro de 2010 o Presidente, Ólafur Ragnar
Grímsson, nega-se a ratificá-la e anuncia que terá consulta popular.
- - Em Março celebra-se o
referendo e o NÃO ao pagamento da dívida arrasa com um 93% dos votos. A
revolução islandesa consegue uma nova vitória de forma pacífica.
- - O FMI congela as
ajudas económicas à Islândia, à espera de que se resolva a devolução da
sua dívida.
- - A tudo isto, o governo
iniciou uma investigação para dirimir juridicamente as responsabilidades
da crise. Começam as detenções de vários banqueiros e altos executivos. A
Interpol dita uma ordem internacional de detenção contra o ex-Presidente
do Kaupthing, Sigurdur Einarsson.
- - Neste contexto de
crise, elege-se uma assembleia constituinte no passado mês de Novembro
para redigir uma nova constituição que recolha as lições aprendidas da
crise e que substitua a actual, uma cópia da constituição dinamarquesa.
Para isso, recorre-se directamente ao povo soberano. Elegem-se 25 cidadãos
sem filiação política dos 522 que se apresentaram às candidaturas, para o
qual só era necessário ser maior de idade e ter o apoio de 30 pessoas. A
assembleia constitucional começa o trabalho este mês de Fevereiro de 2011
e apresentará um projecto de carta magna a partir das recomendações
acordadas em diferentes assembleias, que celebrar-se-ão por todo o país.
Deverá ser aprovada pelo actual Parlamento e pelo que se constitua depois
das próximas eleições legislativas.
- - E para terminar, outra
medida "revolucionária" do parlamento islandês: a Iniciativa
Islandesa Moderna para Meios de Comunicação (Icelandic Modern Média
Initiative), um projecto de lei que pretende criar um marco jurídico
destinado à protecção da liberdade de informação e de expressão.
Pretende-se fazer do país, um refúgio seguro para o jornalismo de
investigação e a liberdade de informação onde se protejam fontes,
jornalistas e provedores de Internet que hospedem informação jornalística;
o inferno para EEUU e o paraíso para Wikileaks.
Pois esta é a breve história da Revolução Islandesa: demissão de todo um governo em bloco, nacionalização da banca, referendo para que o povo decida sobre as decisões económicas transcendentais, encarceramento de responsáveis da crise, reescritura da constituição pelos cidadãos e um projecto de blindagem da liberdade de informação e de expressão.
Disseram algo os meios de comunicação europeus? Comentou-se nas repugnantes tertúlias radiofónicas de políticos de médio cabelo e mercenários da desinformação? Viram-se imagens dos factos pela TV?
Claro que não. Deve ser que aos Estados Unidos de Europa não lhes parece suficientemente importante que um povo pegue as rédeas da sua soberania e plante contra o rolo neoliberal. Ou quiçá temam que se lhes caia a cara de vergonha ao ficar uma vez mais em evidência que converteram a democracia num sistema plutocrático onde nada mudou com a crise, excepto o início de um processo de socialização das perdas com recortes sociais e precarização das condições de trabalho. É muito provável também que pensem que ainda fique vida inteligente entre as suas unidades de consumo, que tanto gostam em chamar cidadãos, e temam um efeito contágio. Ainda que o mais seguro é que esta calculada desvalorização informativa, quando não silêncio clamoroso, se deva a todas estas causas juntas.
Alguns dirão que Islândia é uma pequena ilha de tão só 300.000 habitantes, com uma estrutura social, política, económica e administrativa muito menos complexa que a de um grande país europeu, pelo que é mais fácil organizar-se e levar a cabo este tipo de mudanças. No entanto é um país que, ainda que tem grande independência energética graças a suas centrais geotérmicas, conta com muito poucos recursos naturais e tem uma economia vulnerável cujas exportações dependem num 40% da pesca.
Também haverá quem dirá que viveram acima de suas possibilidades endividando-se e especulando no casino financeiro. Igual que o fizeram o resto dos países guiados por um sistema financeiro liberado até o infinito pelos mesmos governos irresponsáveis e suicidas que agora se jogam as mãos à cabeça. Eu simplesmente penso que o povo islandês é um povo culto, solidário, optimista e valente, que soube rectificar-lhe mostrando valentia, indo contra ao sistema e dando uma lição de democracia ao resto do mundo.
O país já iniciou negociações para entrar na União Européia. Aguardo, por seu bem e tal e como se estão a pôr as coisas no continente com a praga de vigaristas que nos governam, que o povo islandês complete sua revolução recusando a adesão. E oxalá ocorresse o contrário, que fosse a Europa a aderir à Islândia, porque essa sim seria a verdadeira Europa dos povos."
Fonte: NSMB
Tradução do Diário Liberdade, rectificado
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