Falar de suicídio é bastante delicado. A gente nunca sabe quando
ajuda, ou quando atrapalha quem está com isso passando pela cabeça. Espero ter
cuidado aqui.
Em 18 de setembro, uma amiga, se viva fosse, teria completado seus
54 anos.
Uma de minhas melhores amigas, então com 17 anos, deu fim à própria
vida, com um tiro no coração, em novembro de 1986, deixando amigos e familiares
perplexos. Só isso já é motivo suficiente para eu odiar a liberação de armas ao
cidadão comum.
Ângela era pessoa extrovertida e alegrava o ambiente em que
estava. Sempre rodeada de amigos, sua casa vivia recheada de gente e seus pais,
bastante receptivos, jamais negaram as várias festas que fazíamos por lá. E que
festas.
Eu estudara com ela no fundamental (antigo primário) em um colégio de
padres onde fizemos juntos nossa Primeira Comunhão e anos mais tarde, nos
reencontramos na Igreja onde militamos juntos em um grupo de jovens. Nossos pais
eram bastante amigos e participavam do Convívio de Casais com Cristo.
Inteligente, divertida, trocávamos muita ideia, inclusive confidências sobre
nossos amores adolescentes. Eu, ela e um terceiro amigo, sofríamos muitas
desilusões e chorar junto era confortante. Geralmente uma boa garrafa de vinho
ou algo assim, um salgadinho e música boa, nos fazia atravessar anoite entre
lágrimas e gargalhadas.
Outros amigos, mais próximos, também tinham nela uma
grande companheira e por isso estávamos constantemente juntos. A cidade, que até
então não tinha shopping, oferecia uma gama vasta de salas de cinema e casas
noturnas interessantes. Mas só. Assim, frequentávamos juntos cinemas e karaokês,
mas nada substituía as festinhas em nossas próprias casas. E não havia uma, na
casa de Ângela, para a qual não nos convidava a todos.
Se alguém me perguntasse,
dentre os jovens que me cercavam, qual pessoa aparentava ter algum tipo de
propensão ao suicídio, na minha opinião, Ângela ficaria em último lugar. Eu
jamais poderia imaginar isso. Os fatos que já somam 37 anos, não me são todos
conhecidos. Mas muitos de nós, carregamos para sempre, um “cadinho” de culpa
durante anos.
Coincidência ou não, na noite anterior à sua partida, havia uma
festa na minha casa, e eu não a chamei, pois era um outro grupo diferente de
pessoas que não a conheciam. Consta que ela tenha passado por lá e visto o
movimento, ficando decepcionada.
O outro amigo, aquele que citei antes, fez
aniversário no dia de sua morte, portanto, na véspera (o mesmo dia da minha
festa) também aconteceu em sua casa uma festa surpresa, organizada por amigos e
familiares dele, motivo pelo qual ela também não estava. Quem organizou a
surpresa é quem convidou os presentes e pelo que se sabe, ela também passara por
lá, aumentando seu desapontamento.
Ela estava querendo falar com alguém, pois
estava bem arrasada e depois de ir às nossas casas, procurou por uma prima, com
quem conversar. Não me lembro agora se a encontrou ou não. Mas, no final, a
noite chuvosa, fez com que ela, ao guardar o carro em sua garagem, avançasse
sobre a parede da sala e além de derrubá-la, amassasse bastante o carro de seus
pais.
Claro, deve ter tomado reprimendas. Imagine o susto da família.
Mas havia
mais em seus sentimentos.
Um casal amigo também carregou o peso sobre os fatos
acontecidos. A moça, próxima dela, teria iniciado o namoro com um amigo de ambas
que, sem saber, tinha a afeição inconfessada de Ângela. Juntos, nós 4 e mesmo
seus pais, entendemos que, de algum modo, poderíamos ter tentado aliviá-la. Mas
como saber?
No dia de sua morte, ela estava sozinha em casa enquanto os pais participavam de
um evento da Igreja com sua irmã. Vestiu-se muito bem e até recebeu o convite de
alguns amigos para sair. E pegando a arma de seu pai, colocou ponto final na sua
linda juventude e no que seria a história de uma grande figura.
Ângela deixou
uma carta. Não culpara ninguém, mas pelo contrário, pedia desculpas, pois sabia
que causaria grande sofrimento, principalmente aos pais e à irmã caçula, sua
mais fiel amiga. Mas, todos nós ficamos com aquele “e se” na consciência.
E se
ela tivesse entrado em minha casa e se divertido a noite toda? E se eu tivesse
ligado pra ela no dia seguinte, um pouco mais cedo e a convidado para um cinema?
E se, ninguém da família tivesse saído de sua casa naquele domingo? E se os
amigos a visitassem em bando como de costume? E se...? Ela nunca apresentou
nenhum sinal de tristeza, de desânimo, de depressão. E se nenhum de nós
percebeu?
Ângela não só perdeu as chances de ver sua vida brilhar, pois era uma
“baita” amiga, aluna e filha. Ela perdeu a chance de ver sua irmã crescer e
vencer a vida. Além disso, deixou, sem querer, um rastro de profunda tristeza em
todos nós, mas com proporções inimagináveis nos pais e na irmã. Ou seja, seu
auto sacrifício foi uma perda generalizada e sem sentido.
Muitas outras coisas
se sucederam depois disso. Era difícil para nós encontrarmos seu pai ou sua mãe,
antes tão felizes, então tristes e sem vida. E como na maioria das vezes, a
família de quem morre se desmancha. E aos demais, de tempos em tempos, as
lembranças cobram o “e se” de novo e de novo. Isso marcou minha juventude e a de
nossos amigos em comum. E não é raro falarmos sobre ela até hoje. Ninguém nunca
mais foi o mesmo.
Só consegui dormir direito quando numa noite sonhei com ela.
Ela estava em uma linda Igreja e eu fui vê-la. Não podia sentar perto, mas ela
olhou pra mim enquanto cantava e acenou com as mãos. No final da celebração, ela
saiu e me encontrou lá fora. Ao perguntar como estávamos todos, eu disse que
estávamos tristes. Que sua família, principalmente a irmã que era bem novinha,
precisavam dela. Ela então me deu um grande abraço e pediu desculpas. Disse que
não queria deixar ninguém mal e que sabia que tinha feito algo que não era a
melhor saída. Não lembro as palavras exatas, mas em resumo:
“O suicídio não é
solução para nenhuma tristeza. Ele só a aumenta e transborda em quem está perto.
Ele encerra um episódio ruim, mas evita que se possa ver a mudança que
certamente virá com novidades e coisas boas. Agora eu sei. Mas deixe meu abraço
a todos.”
Acordei com a nítida certeza de que a visitei. E por mais que eu tenha
ficado bravo com ela, pelo que fez, agora estava grato. Transmitindo-me paz,
deu-me também uma linda lição, pois todas as vezes que estou mal, posso não
saber o que fazer para melhorar, mas com certeza sei o que não fazer para
piorar.
História muito bonita, mas triste! Abraços!!
ResponderExcluirComo você escreve deaneira tão sensível sobre um tema tão pesado como esse. Eu também acho que ter arma de fogo em casa só serve pra causar tragédias como essa e tantas outras. Nunca me esqueci de uma moça que trabalha a com meu pai e estava grávida de oito meses. O marido a deixou no trabalho e meia hora depois veio a notícia que ele tinha sido assassinado no trânsito por uma batidinha. Passei dias imaginando a felicidade, quantos planos eles devem ter feito pra esse bebê e o desespero dela sem ter o marido ao seu lado na sala de parto, tendo que criar o filho sozinha. O irmão de uma amiga se deu um tiro na perna sem querer e acabou morrendo. Cada pessoa que você perguntar de e conhecer algumas dessas histórias. A pessoa diz que precisa da arma pra se defender, mas até ela pegar a arma e preparar para usar, o bandido já acertou um tiro na sua cabeça.. Penso que tr arma em casa não é solução pra nada
ResponderExcluirQuem mata não é a arma, mas o dedo que dispara o gatilho. Sou contra qualquer tipo de violência, mas colocar a culpa em um objeto de proteção a própria vida não faz parte do meu pensamento. Sou contra as armas nas mãos de bandidos, porém isso ninguém combate.
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