Marcelo Gomes Sociólogo e professor
Há na literatura um princípio popularizado extraído da obra Il gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Daí ser conhecido como princípio lampedusiano. Segundo esse, às vezes é preciso mudar tudo para que as coisas permaneçam como estão.
Em junho de 2013 o Brasil é sacudido por um terremoto social. Revoltas populares e manifestações gigantes escalam aparentemente do nada. Muitos ficam surpresos, mas ninguém no momento conseguia explicá-las com consistência. Grupos de esquerda juravam que aquilo era a ebulição social de uma condição insustentável que vinha se gestando há muito tempo. Sua retórica inicial era de que finalmente uma insurreição popular havia começado e o céu seria o limite. Detalhe, o mote inicial era 20 centavos na passagem de ônibus. Depois, disseram estes: “não é só por 20 centavos”. Grupos de direita aproveitaram-se para reavivar o movimento “cansei” e seu congêneres. Sim, movimentos típicos de classe média em geral protofascistas, antipetistas e com muito ódio de classe pipocaram ao longo de todo o governo do partido dos trabalhadores. Mas naquele momento, de fato, engolfaram e dirigiram as manifestações. Pautas estapafúrdias apareciam espontaneamente aos milhares, mas duas ganharam o movimento: a primeira era a pauta anticorrupção. A segunda, a derrubada da PEC 371 .
Poucos se lembrarão disso, com certeza, mas já à época isso acendeu uma luz amarela em meu radar político. De repente, os cartazes apareciam no mundo inteiro padronizados. Manifestantes de muitos países com os mesmos dizeres, mas cada qual em sua língua nativa. Pareciam orquestrados remotamente como as manifestações da chamada primavera árabe. O mesmo modus operandi parecia estar em curso. E então governos estaduais, presidência e congresso ficaram acuados. Durante um mês inteiro pareceram perdidos, e tanto quanto a população, sem saber o que fazer ou pra onde ir. O saldo disso já o sabemos. Elas se esvaziaram pouco a pouco e o país pareceu retomar seu ritmo normal. Mas era uma miragem. As placas tectônicas tanto quanto os bastidores da política se movem sem que a superfície perceba. Em 2014 Dilma consegue sua reeleição por pouquíssima margem de votos e entram em cena três personagens nefastos. De um lado Aécio Neves lidera um movimento do PSDB para contestar as eleições, dando início a uma arma política que fissura a institucionalidade republicana. Poucos grupos embarcam nisso. Mas aí entram Eduardo Cunha que controla o congresso para estrangular o poder da presidência e nos bastidores do judiciário, uma operação política que iria destruir a economia do país em poucos anos e oferecer material farto, ainda que em parte manietado artificialmente, para ser usado pelos grupos políticos opositores. O protagonismo de promotores do Ministério Público em conluio com um personagem sombrio e de fraca expressão e formação como a de Sérgio Moro dá sentido finalmente àquela pauta estranha das jornadas de junho de 2013: a rejeição do PL 37.
A grande mídia, os grupos políticos rivais e todas as camadas sociais que cresceram com muito catecismo religioso e catecismo de classe se unem contra a presidência. Uma peça jurídica pífia e que se mostrou uma farsa foi encomendada pelo PSDB e juristas como Miguel Reale Jr., a desconhecida e histriônica Janaína Paschoal e, pasmem, Hélio Bicudo, aceitam o abjeto papel de dar um verniz de seriedade a isso. Não importava. Tudo o que boa parte dos congressistas reunidos em torno de Eduardo Cunha precisava era de uma justificativa. O golpe parlamentar foi dado. O partido dos trabalhadores que preferiu cultivar eleitores em detrimento de militantes foi trucidado. Acostumado ao jogo parlamentar e clientelista entre as elites políticas, Lula tentou negociar por um mês em Brasília. Não surtiu efeito. Sua nomeação foi atacada ilegalmente por Moro e Gilmar Mendes e o PT, não sabendo mais o que é base social a não ser em dia de eleição, se recolheu acuado. A antiga militância petista só ameaçou uma resposta quando a figura de Lula foi alvejada. Graças ao culto à personalidade deste político carismático, desaprenderam a dinâmica da luta de classes. Mas foram às ruas e tentaram impedir a prisão de Lula quando esta chegou. Frustração ao ver o próprio líder se entregar, fugindo dos que tentavam segurá-lo no sindicato. Diz uma versão que foi para evitar um banho de sangue, mas outras dizem que a burocracia petista jurava que a prisão seria muito temporária. Ledo engano.
O antipetismo que perdeu vergonha e assumiu logo sua essência fascista ganhou as ruas. Agora tinham uma cabeça para pendurar em praça pública e festejar. Na esteira dessa onda aparece o mais abjeto político desta tendência fascistóide. Jair Bolsonaro é eleito e sabemos de todas as atrocidades cometidas por ele e seus seguidores e familiares ao longo destes anos sombrios e tristes. E eis que chegamos às vésperas da eleição de 2022 e o tema desse artigo. Lula saiu da cadeia porque seu caso foi anulado dado a mácula de origem fundada na competência do juiz natural. Agora lidera a campanha eleitoral e tem grande chance de ganhar no primeiro turno. Mas nada disso foi fácil. Muitas outras coisas ocorreram que não constam aqui. A vaza-jato, a prova da ação do departamento de Estado norteamericano no treinamento e condução das investigações daqui, o desastre da gestão de Paulo Guedes na economia, o genocídio trágico de uma gestão criminosa da pandemia da Covid, a frente ampla formada em torno de Lula que congregou antigos e iminentes personagens que apoiaram ou conduziram o golpe de 2016 e até Alckimin, o antigo rival do partido golpista, que se tornou o vice de Lula. A elite financeira que abandonou Dilma quando esta ameaçou seus lucros ao usar a Caixa e o Banco do Brasil para atacar o mercado de juros volta a abraçar Lula na certeza de que o mercado financeiro assim como todos os negócios da burguesia estarão em melhores mãos do que as do apedeuta e fascista Bolsonaro. O povo trabalhador, que durante quatorze anos de governo do partido dos trabalhadores jamais foi chamado para um referendo popular ou plebiscito, agora é convocado para trabalhar e votar novamente. A estes é oferecida uma saborosa retórica populista de que voltarão a comer churrasco e tomar cerveja. De fato, esse gozo popular é bem menor agora do que foi outrora. Mas em geral lhes é oferecido mais palavras do que fatos. O paraíso da classe trabalhadora é, desse modo, reduzido a este gozo dominical. E ainda que ela chegue a esse paraíso, o que teremos é a manutenção desta classe de forma subserviente. Lula edulcora a exploração capitalista e realiza com picanha (ainda que não passe de maminha) o pacto social tão almejado pelas elites econômicas. Esta mesma elite que ainda é ideologicamente colonialista, escravocrata e não pensa duas vezes em abraçar o fascismo contra o governo dos trabalhadores, também chega assim ao seu paraíso. O tiro saiu pela culatra. Bolsonaro era bárbaro demais, mesmo para essa nossa odiosa e nefasta elite e ela se viu obrigada, após tê-lo prendido, a soltar Lula e aceitar o seu retorno.
Enfim, não queria votar em algo que sempre critiquei. O projeto que defendo não tem chances eleitorais. Ciro Gomes defendeu um projeto capitalista tanto quanto o de Lula, mas um pouco mais à esquerda e parecia palatável frente ao neoliberalismo envergonhado do PT, mas como lhe faltou alianças e se viu isolado, adquiriu uma retórica tão tacanha quanto daquele que nos governa atualmente. À sombra do fascismo qualquer tempo a mais nas mãos do candidato a déspota ignorante se revela temerário. A tática do PT de esvaziar os movimentos pró-impeachment deu certo. Quando muitos de nós fomos às ruas e pedimos impeachment de Bolsonaro, a burocracia partidária do PT fez o cálculo político frio de preferir sangrar Bolsonaro e levar até às eleições. Funcionou. Votaremos em peso em Lula para tentar acabar com esse governo criminoso que assedia toda semana a frágil democracia burguesa brasileira. E com isso, fecharemos o ciclo lampedusiano. Muita coisa foi feita para que tudo permanecesse como estava. Com dois agravantes: agora a classe trabalhadora amarga uma reforma trabalhista e uma reforma previdenciária que aumentaram a superexploração do trabalho no Brasil.
___________________________________________________________________________________
1 As manifestações conseguiram pressionar os parlamentares que rejeitaram esse projeto de emenda constitucional que visava limitar poderes investigativos do Ministério Público. Poderes que se tornaram decisivos para todo o movimento antipolítica que se operou a partir de então. Confira: https://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/camara-derruba-pec-que-tentava-limitar-o-poder-deinvestigacao-do-mp.html.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por contribuir com sua opinião. Nossos apontamentos só tem razão de existir se outros puderem participar.