Parecia
tão simples
A gente cresce, amadurece
e as coisas começam a ficar muito complicadas.
Eu me lembro, quando
criança, tudo parecia muito simples de entender.
Hoje, se não houver
explicações muito bem dadas, nada parece claro o suficiente.
O tempo, o espaço, as
formas eram naturalmente detectados pelos olhos, pelo tato. Mas agora, se não forem montadas complexas
equações, ninguém dá a menor importância a nada.
É mesmo necessário
complicar tanto assim?
Por que tudo tem que ter
um fundamento, uma lógica ou um conceito por trás?
Dia, noite, passado,
futuro, chão e céu não precisam ser confusos para a gente.
Tangíveis e intangíveis,
explicam o que pode ou não ser tocável.
Mas a gente também usa essas mesmas palavras para exemplificar tantas
outras coisas.
Fora a enorme confusão
que dá nomes dignos a coisas indignas e vice-versa.
Me ponho a pensar que se até
um maluco pode se definir filósofo sem o ser de fato, também nós podemos
filosofar ao nosso bel prazer.
Considerações
O Alexandre era um grande
amigo em minha pré adolescência. Aliás,
ainda é um grande amigo nos dias atuais.
Mas mesmo lá, no
primário, eu sabia que era bem mais esperto e inteligente que eu.
Juntos, em nossas tardes,
criávamos brincadeiras bem diferentes da turma toda. Uma delas, batizamos de “considerações”.
A gente reunia livros de
nossos pais para leituras em voz alta.
Discutíamos o que líamos em um profundo debate. E então, registrávamos nossas considerações e
tirávamos nossas conclusões.
Acredite se quiser, foi
assim que descobrimos como as crianças veem ao mundo. Lendo livros e enciclopédias aos doze anos de
idade nas tardes após a aula e anotando cada detalhe.
O mais legal dessas
considerações eram nossas anotações que viravam nosso próprio arquivo de
aprendizado.
Falávamos de tudo. Desde botânica, línguas, até história.
Alexandre tinha um jogo
de lentes que ganhou do avô que era fascinante.
De luneta a microscópio.
Naqueles dias, não era
preciso estudar física além do comum para descobrir os efeitos do som, da luz
ou mesmo do impulso.
Ele era mais afeito a
números que eu. Tanto que eu só viria a
gostar de física depois de me tornar um quarentão.
E o fato de gostar, não
faz de mim um físico. Talvez um curioso,
que ainda observa e anote as próprias considerações até hoje.
Lá, quando criança, o que
mandava era mesmo o experimento. Um
empirismo infantil, fruto da inconsequência.
Eu prossegui anotando
tudo. Desde minha primeira experiência
com feijões.
Os vários feijões
Certa feita, a professora
de ciências (tínhamos uma matéria chamada “agricultura” no colégio), nos
encomendou para botarmos um grão de feijão sobre o algodão, em um potinho vazio
de iogurte e molhá-lo, observando ao longo dos dias.
Daí, deveríamos desenhar
o broto em seu desenvolvimento diário ou a cada dois dias.
Como crescia rápido.
Logo eu tinha umas sete
ou oito imagens diferentes da plantinha.
Meu feijão.
Ao entregar o trabalho à
professora, me lembro de ter discordado dela ao tentar explicar cada pé de
feijão sobre a cartolina.
_Não são vários pés de
feijão – disse ela enfática. É apenas um
em suas múltiplas fases.
Mas eu defendia minha
tese com ardor.
_Não professora, são
vários pés de feijão. Pois esse é
diferente desse que é diferente do seguinte e assim por diante.
Me parecia tão
simples. Tão claro. Afinal, cada dia ao olhar o experimento, me
deparava com algo diferente. Como dizer
que o embrião era o mesmo broto, depois o galho mais avantajado e por fim aquela
folha viçosa?
_Ora menino... a planta
cresceu.
_Sim e se
transformou. Diariamente foi deixando
pra traz quem era para se tornar outra.
E registrei todas elas.
Não me lembro a nota que
tirei desse trabalho, mas com certeza não foi muito boa. E se foi razoável, foi muito mais pela arte
em si que pela minha discussão “irrelevante” sobre o pé de feijão.
Os
frascos de shampoo
Morávamos numa casa
simples. Portanto, não existiam banheiros
e sim apenas um, ao que chamávamos de “banheiro social”.
Acho que ainda é assim
que se referem os corretores de imóveis ao mostrar uma casa ou apartamento para
alguém.
Aliás, os banheiros podem
ser iguais e conter as mesmas coisas, mas dependendo de sua posição na
construção, ganham também outros nomes.
Lavabo, banheiro da suíte, banheiro social ou banheiro da edícula. Mesmo quando está em um apartamento, mas faz
parte do quartinho dos fundos.
Só que é melhor eu deixar
isso de lado para focar no assunto aqui.
Cada um de nós quatro
(eu, meu irmão e meus pais), tínhamos um frasco de shampoo diferente.
De vez em quando, com os
olhos ardendo ou irritados pela água, ao apanhar o frasco de shampoo eu acabava
por pegar o errado. Então marquei o
meu. Era branco. Havia um mais puxado pro bege e outro meio
areia.
Ah, mas o duro era tomar
banho ao entardecer.
Se eu acendesse a luz, as
cores ficavam confusas e todos os frascos, até por conta da forte luz amarela
das lâmpadas incandescentes de então, se pareciam.
Se eu não acendesse a
luz, no entardecer, as cores sofriam alteração e eu pegaria o shampoo de meu
irmão no lugar do meu.
Caramba. Tinha que anotar isso nos meus
apontamentos. Afinal, o mesmo frasco se
tornava outros quando impactado pela luminosidade do momento.
Acredito que se eu tivesse
relatado a professora de então, ela também me teria contradito.
_Não vê que é o mesmo
frasco, apenas observado em horários e sob iluminação diferente?
E então eu diria que
não. Cada frasco seria diferente do
outro.
Ah em dias como hoje nos
quais todos temos um celular-câmera fotográfica o tempo todo nas mãos.
Eu fotografaria o frasco
em cada horário diferente para provar minha tese. Haveria fotos de vários
frascos diferentes.
As
caixas d’água
Eu amava ir com meu avô,
pelo menos uma vez por semana, em sua chácara.
Ele gostava tanto de
reunir a família lá aos domingos, que chamou-a de Chácara dos Netos. Colocou até uma placa no portão.
Mas o que tinha de
diferente é que eu e meu irmão íamos com ele durante a semana, em pelo menos um
dos dias.
Meus demais primos só aos
domingos. Isso fazia do lugar, um
pouquinho mais nosso.
Meu irmão, bem mais
jovem, gostava de bichos e passava o dia caçando ou procurando lagartos,
lagartas ou o que o valha.
Já eu me ocupava com as
plantas. E gostava mesmo de ajudar a
regar.
Para esse fim, meu avô
mantinha uma caixa d’água de amianto, hoje material impróprio (na verdade à
época já devia ser, embora de uso comum), com água para a rega.
Não tínhamos medo de
mosquito naqueles dias. Acho inclusive
que não dava tempo de juntá-los, pois utilizávamos quase todo o conteúdo cada
vez que íamos regar as plantas.
Árvores frutíferas, nos
pés das quais ele fazia uma coroa, que eu em seguida com um balde enchia de
água.
A cada volta na caixa, me
deparava com uma caixa diferente.
À medida que mais vazia,
eu conseguia arrastá-la ou virá-la para facilitar a coleta da água. E quando quase vazia, ele me deixava entrar e
limpar lá meus pés.
Eu então gostava dela
cheia, pois era aquela que me possibilitaria regar bem as plantas. Quando mais vazia, me obrigava a movimentos
mais difíceis até para alcançar a água.
Até chegar no ponto em que eu adorava.
Cada uma delas, uma caixa
diferente a me proporcionar sensações e emoções diferentes.
Os bifes
Todo mundo que
experimentou ir ao mercado com fome, gastou além da conta.
Quando criança eu
raramente acompanhava minha mãe às compras.
Mas compreendi fácil isso quando em uma noite, ao sentar à mesa para o
jantar, olhei com desdém para o bife.
Embora suculento e
cheiroso como sempre, naquela noite não tinha pra mim qualquer valor.
Me lembrei que houve
situações em que briguei com meu irmão pelo bife mais gordo, ou então pelo mais
ao ponto.
Claro. Um mesmo bife pode ser diferente dependendo
de nosso apetite.
_Você não está bem –
falou Maria da Penha.
Mas eu estava. Apenas não queria o bife aquela noite.
Até que na noite seguinte
ela fez apenas um para cada um de nós. E
quando quis repetir ela me lembrou da desfeita na noite anterior.
_Não há nada de diferente
no bife de hoje com relação ao de ontem.
E claro. Tive que discordar.
_Sim, há. O de ontem não me chamou a atenção. Não me despertou a vontade. Já o de hoje é diferente. Seu cheiro, me tortura enquanto não o posso
mastigar.
_Ah, menino louco. O de ontem tinha o mesmo cheiro.
De novo, não era o mesmo
cheiro. Era um cheiro percebido por
alguém que não estava com apetite.
Essa incompreensão das
pessoas perante minha observação dos fatos, das coisas, ia direto para meu
caderninho de considerações.
E então chegava um dia em
que eu ia ler os apontamentos.
Apontamentos
Pessoas podem ser como
brotos de feijão. Crescem, evoluem, se
aprimoram ou se enchem de manias. Isso
faz delas pessoas diferentes em cada fase de suas vidas, ou em muitos casos,
num mesmo dia.
Elas também podem parecer
diferentes pelos olhos de quem as percebe, dependendo do momento, do prisma
pelo qual são observadas, como os frascos de shampoo. Até seu humor variam, dependendo de quem as
vê e do estado de espírito que o observador está vivendo naquele instante.
O que talvez mais defina,
no entanto, as pessoas, mais até do que seu desenvolvimento ou a forma como a
observamos parece ser seu conteúdo.
Vazias ou cheias, transbordando generosidade, cortesia ou com ausência
total de simpatia, nos causam emoções ou sensações diferentes.
Por fim será nosso amor,
nossa vontade ou não de encontrar ou estar com alguém, que fará dessa pessoa alguém
que desejamos perto ou longe.
Tão fácil de entender,
sem necessidade alguma de faculdade ou curso equivalente.
Na tosca e infantil
análise de situações corriqueiras, eu conseguia formular minhas teorias e
compreender melhor o mundo.
Por que cresci?
Agora se quero
compreender algo, tenho dois caminhos.
Estudar muito sobre, ou buscar profissionais que me possam ajudar a
fazê-lo.
Don Alexandrino