PorMARCELO GOMESProf. Dr.
Há muito tempo atrás, no território de terra brasilis, também chamado por cartógrafos seiscentistas de terra incógnita, um ciclo larval se repetia. De tempos em tempos ovos de uma criatura nefanda eclodem. Em vários momentos da história desse país “pessoas de bem” cuidam de acondicioná-los em ninhos tépidos e enchem-no de cuidados. O momento que nos importa agora ocorreu na virada da década de 40 para 50, quando Getúlio Vargas se candidatava à presidência. Uma grande parte da elite econômica e política de nosso país via com muita preocupação a aliança varguista e trabalhista e se punha em alerta ante uma evidente virada ideológica do antigo ditador complexo. Como voz altissonante e representativa dessa elite, se erguia Carlos Lacerda, figura desprezível que era muito zelosa no cuidado dos ovos do fascismo eterno — conceito muito bem construído por Umberto Eco. Lacerda também construía armas semânticas e sua mais conspícua frase fascista foi sobre a eleição de Getúlio. Diria ele à época: “o Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Com isso, ele riscava uma claríssima
meta para a elite e seus aliados. Por mais defeitos congênitos da democracia
burguesa, ela ainda pode guardar perigos para os proprietários e capitalistas.
Por vários mecanismos a democracia burguesa filtra os interesses antagônicos de
sua classe e de seus representantes, preservando os interesses desta classe
proprietária. Mas ocasionalmente, principalmente diante de figuras carismáticas
não totalmente alinhadas, parece entrar areia nas suas engrenagens. E por isso
mais uma vez instrumentalizavam os sentimentos ancestrais de parcela da
população e o fascismo eclodia na década de 50. Todavia, o suicídio de Vargas
teria jogado um pouco de água nessa fogueira que só foi reacender uma década à
frente, culminando no golpe de 64. A elite brasileira, em geral autoritária,
colonialista, escravocrata, racista e ignorante, sendo inclusive incapaz muitas
vezes de ser uma classe para si, não
hesita um só instante em se valer da violência para defender seus próprios interesses.
Se nas eleições elegemos seus representantes, então nos dão alguns anos de paz
na arena política, ainda que os mesmos anos sejam de chumbo na arena econômica,
sendo que pretos e pobres os recebem os tais chumbos literalmente nas margens
da geografia urbana.
E o que esse princípio de
Lacerda tem a ver conosco hoje e com o pão nosso de cada dia? É simples. O
mesmo princípio vigorou contra o segundo governo Dilma. A partir de 2014 a
presidente Dilma Rousseff teve uma enorme dificuldade em governar. De início,
Aécio Neves e uma súcia tenebrosa do PSDB assumiram esse papel lacerdista.
Depois, foi a vez de Eduardo Cunha. E por fim a intrusão de guerra híbrida
imperialista instruindo processos no Brasil via Lava-jato. Conseguiram
mobilizar as massas para resguardar apoio popular ao seu golpe inusitado e
parlamentar. Mas agora é a vez de Lula. Novamente o pacto desta elite para
impedir a governabilidade se faz visível. Os óbices colocados no congresso para
as medidas do novo governo federal, o discurso único e agressivo da grande
mídia hereditária e proprietária e a teia de comunicação fascista já indicam a
ofensiva. Isso não quer sugerir que sejam todos fascistas. Não. Existe muita
gente “polida” e “limpinha” que não é fascista na teoria, ainda que não hesite
um só instante em abraçar e fazer coro com os movimentos fascistas engendrados
e eclodidos no Brasil desde junho de 2013, quando então o ensaio do poder
popular de uma esquerda atônita, perdeu as ruas para um movimento golpista que
antecipava, por parte da elite, o basta marcado para a eleição de 2014.
Como sempre os movimentos de
direita e seus porta-vozes sequazes vociferam contra o absurdo do Estado,
repetindo a capenga e pouco científica cantilena liberal. Para estes o Estado é
de fato como o temível monstro hobbesiano, o Leviatã. Assim, se aproveitando em
parte dos assombros do inconsciente, da vulnerabilidade do sistema límbico dos
indivíduos e a performance arquetípica e simbólica junguiana, o extremismo de
direita vem instrumentalizando um princípio liberal depreciar e demarcar o
Estado como o mal eterno e figura lendária que se interpõe entre os indivíduos
e seus desejos incompatíveis com a vida coletiva e civilizada. Estes mesmos
indivíduos que se escandalizam mais com uma assistência social do que se
compadecem da penúria do famélico que bate ao vidro do seu carro nos semáforos
de cada grande cidade no Brasil hoje. E então esse movimento traça duas metas
precisas. Uma delas é privatizar tudo. A outra, impedir a esquerda de chegar ao
poder ou governar. Para atingir a primeira meta, necessitam atingir primeiro a
segunda. E como o ovo do fascismo que estava chocando desde 2013 eclodiu com a
vitória de Jair Bolsonaro, puderam engendrar com competência as duas metas. É
verdade que o governo ilegítimo de Michel Temer e o governo assassino de
Bolsonaro privatizaram empresas estatais. Mas o fantasma do Leviatã estaria
sempre lá para assombrá-los. Por isso, foram mais fundo no princípio Lacerdista
e instauraram a terra arrasada.
Tentaram destruir uma grande parte das instituições e braços do Estado que não
lhe interessavam. Conseguiram. Mas não só. A sagacidade desse movimento foi
perceber que mais do que destruir um Estado que pode estatizar empresas, seria
mais conveniente e eficaz privatizar o próprio Estado. Foi o que fizeram ao
votarem a chamada “autonomia do Banco Central”. Autonomia de quem? Ora, do
poder de Estado e, portanto, do poder republicano. Conseguiram com isso
garantir, desde que manietando corretamente as indicações ao comitê, um governo
vitalício dos proprietários, ao menos no que diz respeito à política monetária,
algo nada trivial para uma economia nos tempos de capitalismo financeiro.
Pois é aqui que entra o
princípio de Lacerda. Lula ganhou as eleições e poderá tentar governar, mas de
fato agora não é apenas o jogo político do congresso, ora legítimo ora mero
clientelismo, que se erguerá como único obstáculo. O Banco Central tem um
enorme poder e dita os rumos de nossa economia, deixando ministério da fazenda
e ministério do planejamento de mãos atadas. E essa estratégia lacerdista ficou
mais do que evidente na última ata do Copom, da qual transborda mais ameaças
políticas do que notas técnicas. Sob a presidência de Roberto Campos Neto,
braço do capital financeiro à frente do BC, a política monetária instaura o
maior juros do mundo em nosso país já castigado pela crise econômica interna
deixada pelo governo Bolsonaro e pela crise mundial. A justificativa do BC para
a manutenção de juros estratosféricos é servir para contenção da inflação,
única variável pela qual parecem operar políticas monetárias, ainda que não haja
inflação de demanda no Brasil hoje, única forma inflacionária realmente
sensível à elevação da taxa de juros. Sabemos, contudo, que a meta da inflação
nada mais é do que a sinalização do quanto será a taxa real de juros pela qual
rentistas engordam seus bolsos ao final de um mês de investimentos ou meras
especulações. Privatizaram o Estado para que o Estado não possa trabalhar numa
lógica republicana.
Aliado a isso existe a
chamada política de PPI praticada pelo conselho da Petrobrás. Simplificando, a
adoção dessa medida faz com que nosso petróleo extraído aqui por mãos e
tecnologia brasileiras seja vendido no mercado interno pelo preço internacional
do barril. Outro fator que incide sobre o preço dos combustíveis é o fato de o
governo Bolsonaro ter privatizado e vendido muitas refinarias brasileiras. Com
isso, sobe o preço dos combustíveis e o preço do frete que justamente irá
encarecer as mercadorias consumidas, uma vez que adotamos o transporte
rodoviário como meio quase hegemônico. Esse nível de preço internacional é o
que possibilitou à Petrobrás, empresa que deveria ser pública, distribuir o
segundo maior dividendo de lucros no ano passado no mundo inteiro. Pagamos caro
o combustível para que acionistas encham seus cofres de dinheiro. E isso se
reflete também no preço do pão e de tudo que consumimos.
Mas não nos enganemos. A
oposição da pior composição parlamentar já vista em nossa história e a privatização
do Estado vista acima não estão sozinhas como princípio lacerdista. Este
Cérbero tem ainda outra cabeça e a mais feia delas. É a cadela do fascismo como
diria Brecht. Pra combater o suposto anedótico fantasma do comunismo, parecem
ter evocado no Brasil a tenebrosa figura literária de H. P. Lovecraft, o
monstro Cthulhu. Um gigante meio humano, meio polvo, que fazia com que seus
observadores fossem levados à loucura, trouxe o terror para combater o outrora
chamado Leviatã. Mas a metáfora encontra aí seu limite, uma vez que o fascismo
anseia a conquista do Estado justamente para poder operar sua máquina de
terror, eliminando as oposições para poder desbastar os efeitos colaterais das
democracias que permitem contornos populares.
Sendo assim, sabemos que
estas forças não estão derrotadas e não deixarão Lula governar. Mais que isso.
O governo Lula é na prática uma grande coalizão contra a barbárie e por isso
não é de fato um governo popular. E se mesmo assim está impedido de governar
para a elite, que dirá para os trabalhadores. E é por isso que o simples voto
numa urna não é o fim da democracia, mas o começo. Os movimentos sociais e a
população trabalhadora precisam entender que devem ganhar as ruas e lá
demonstrar sua força e seus desejos. Petrobrás, Eletrobrás e demais empresas
estratégicas precisam voltar ao nosso poder e servir aos propósitos de
desenvolvimento nacional e social. Precisamos exigir o fim da farsa da
autonomia do Banco Central que não é nada autônomo em relação ao capital
financeiro e está matando a economia brasileira. Enfim, a vitória nas urnas,
tão suadas, não pode virar motivo de descanso, ainda que merecido. Todo esforço
precisa ser feito na árdua luta contra o fascismo e contra o domínio do capital
sobre a vida humana e ecologia.